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quarta-feira, 12 de agosto de 2020

Líbano: será possível fazer a Revolução?


Campo de refugiados palestinianos (Bourj Al Barajneh) nos arredores de Beirute (2013). Foto: jmr


É terrível a decisão com que se confrontam os libaneses. Terrível porque difícil e pode significar um corte com tudo o que têm conhecido na história recente do país. Perante um país em bancarrota, um Estado que não existe, desemprego em níveis assustadores e carências de toda a ordem – para além das ameaças externas – os libaneses estão na rua em protesto e já mostraram que conseguem fazer cair Governos. Mas esta é a fase em que os que verdadeiramente mandam no Líbano permitem o aliviar da pressão para evitar que a “panela rebente” de forma violenta e descontrolada.

 

Talvez seja exagerado anunciar a morte do actual sistema político e da divisão de poderes que serviu de pilar a 30 anos de paz entre as diferentes comunidades que compõem o Líbano mas, por outro lado, a necessidade de mudança é óbvia e, sem ela, não se vislumbra forma de dar um novo rumo ao país. Esse Acordo, que dividiu lugares no Parlamento, atribui a Presidência a um cristão Maronita, a liderança do Governo a um sunita e a Presidência do Parlamento a um xiita, parece um colete de forças do qual é imperioso que o Líbano se liberte, mas por outro lado é impossível prever o que pode acontecer se esse pilar da paz for dinamitado.

 

É habitual referirmo-nos a determinadas situações dramáticas ou de grande conflito com a expressão “nada vai ser como antes”. Algumas vezes será um excesso de linguagem provocada por visão curta da História, outras será uma leitura apressada e de hipervalorização de um determinado contexto, mas outras vezes é mesmo assim e a mudança é radical. E aqui convém sublinhar que “radical” significa tão só, literalmente, ir à raiz do problema.

 

O Líbano atravessa uma dessas situações. Isto é: o copo encheu e transbordou, a paciência ultrapassou todos os limites, e não há forma de acalmar a revolta dos libaneses a não ser que seja feita uma mudança radical no sistema político que os arrastou para um caldo de desespero que nunca foi visto em tempos mais recentes, mesmo com as sucessivas guerras, conflitos e vagas de refugiados.

 

Para que a revolta sossegue, será necessário que todos os protagonistas das últimas três décadas (ou até mais) saiam de cena. É essa a exigência da “rua”. Os libaneses não acreditam em políticos que quebraram sucessivamente as promessas feitas ao povo, ao mesmo tempo que enriqueceram e alimentaram clientelas, deixando o país minguar e entrar em falência.

Identificado o problema, falta encontrar uma solução. Quem deve substituir os actuais políticos?, “caras novas” das mesmas forças políticas? Será difícil, uma vez que não poderão escapar aos “esquemas” que essas forças políticas sempre controlaram. Então, quem? Será possível surgir uma nova geração de políticos, quiçá com origem nos diferentes (e são muitos) movimentos que organizam os protestos que já fizeram cair dois Governos? E que orientação política terá esse novo movimento? Conseguirá formar um único bloco/partido político que capte, independentemente da confissão religiosa, o voto e a confiança de muitos libaneses? Ou vão surgir vários pequenos partidos e movimentos que acabarão trucidados pelas forças políticas tradicionais? Basta que nos lembremos de que o Movimento que provocou a queda do egípcio Moubarak foi varrido nas eleições que se seguiram e, como sabemos, o Egipto já regressou à “casa de partida” com um ditador militar no poder. E se este Movimento de revolta no Líbano conseguir formar uma força política sólida, como vão reagir as forças políticas tradicionais? Vão abrir mão de toda a influência e poder que sempre mantiveram?

 

São perguntas com resposta extremamente difícil. Para além do que os libaneses pensam e querem é bom não esquecer as influências externas. Irão, Estados Unidos, Rússia, União Europeia (para não dizer França...) e até a China, estão a mexer “os cordelinhos”. Israel, embora não directamente, também influencia.

 

O único censo de que há registo foi feito em 1932 e não se sabe ao certo quantos são os libaneses. Mas sabe-se que existem 18 confissões religiosas no país. Na hora da verdade – do voto – há uma identidade confessional que pode sobrepor-se a um interesse nacional. É muito difícil a quem se sente desprotegido abandonar a única base que lhe oferece garantias de protecção e apoio. E aí chegados, os sunitas irão votar nos partidos sunitas; os xiitas nos partidos xiitas e os cristãos nos partidos cristãos. Não adiantará muito dizer que não pode ser assim, porque a realidade é assim mesmo e só mudará quando os libaneses quiserem.


Os libaneses têm uma memória de guerra e violência que certamente não quererão repetir, mas também é verdade que muitos libaneses nada têm a perder.

 

Pinhal Novo, 12 de Agosto de 2020

josé manuel rosendo

domingo, 14 de junho de 2020

O Tribunal Penal Internacional não peca por excesso, mas por defeito: a invasão do Iraque, em 2003, está por investigar e julgar.

Anciãos de aldeia nos arredores de Nassíria, Iraque, Abril 2004. Foto: jmr
Qualquer instituição internacional que tenha o atrevimento de tratar os Estados Unidos como apenas mais um país entre todos os outros, já sabe que vai ser alvo da fúria de Donald Trump. O actual inquilino da Casa Branca não esgrime argumentos, não contrapõe, não dialoga, não tenta desmontar as teses que lhe desagradam. Não! Donald Trump, ofende e ameaça quem se lhe opõe ou tem opinião contrária. E o mais grave é que tem poder para fazer o que quer.

A implícita supremacia de que o Presidente norte-americano se julga possuído – que o coloca acima da Lei e que o afasta do multilateralismo que é o concerto entre nações – dá azo a uma escalada de tensão em todos os conflitos em que se vê envolvido, com prejuízo de toda a comunidade. Quando devia ser conciliador e procurar soluções, Trump é um verdadeiro incendiário. Os únicos que gostam desta atitude são os seus eleitores que, muito provavelmente, lhe vão dar um segundo mandato presidencial.

As Administrações norte-americanas (apesar do Estatuto de Roma ter sido assinado por Bill Clinton, em 1998) sempre defenderam que os seus militares em missões externas não poderiam ser acusados de crimes de guerra. Aliás, precisamente no ano em que o Estatuto de Roma entrou em vigor (2002), George W. Bush, não se coibiu de chantagear os países que decidissem entrar para o TPI, ameaçando-os com a retirada de assistência militar norte-americana. No mesmo ano, o Congresso autorizou o Presidente a usar meios militares para libertar militares norte-americanos que viessem a estar detidos às ordens do TPI.

A mais recente investida contra uma instituição que trata os Estados Unidos tão só como par entre pares, está consubstanciada no decreto que estabelece sanções contra os Procuradores do Tribunal Penal Internacional (TPI) que se atrevam a investigar eventuais crimes de guerra que tenham sido cometidos por militares norte-americanos no Afeganistão. O TPI autorizou, no início de Março, uma investigação para apurar eventuais crimes de guerra e contra a humanidade, que tenham sido cometidos por militares norte-americanos, militares afegãos e taliban.

É certo que os Estados Unidos nunca ratificaram (apesar de inicialmente terem assinado) o Estatuto de Roma que estabelece do TPI desde 2002, mas ele existe e está ratificado por mais de 120 países, havendo outros que o assinaram mas ainda não procederam à sua ratificação. O TPI pode investigar casos de genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra e também o crime de agressão, quando cometidos ou sofridos por Estados que tenham ratificado o Estatuto de Roma. O Afeganistão é um Estado-membro e, queiram os Estados Unidos ou não, a investigação é legal e legítima. Como está referido no próprio Estatuto de Roma “no decurso deste século (foi redigido em 1998), milhões de crianças, homens e mulheres têm sido vítimas de atrocidades inimagináveis que chocam profundamente a consciência da Humanidade” e é isso que não pode passar sem investigação e, se for o caso, por julgamento e condenações. É uma questão de Direitos Humanos.

Depois da ameaça de Donalp Trump contra os Procuradores do TPI, chegou a solidariedade de Benjamin Netanyahu. O Primeiro-ministro israelita acusa o TPI de estar politizado e obcecado numa caça às bruxas contra os Estados Unidos e Israel, enquanto esquece as violações de Direitos Humanos no Irão. Tal como Trump, Netanyahu também se julga possuído de uma supremacia que o coloca acima da Lei, seja qual for a origem que lhe atribua. Israel também não faz parte do Estatuto de Roma.
Para que fique completo o eixo da nossa preocupação (para não citar directamente George W. Bush) só falta mesmo que Jair Bolsonaro se junte à frente de luta contra o TPI. Sendo que ainda recentemente o TPI aceitou analisar uma denúncia do Partido Democrático Trabalhista, que acusa Bolsonaro de crimes contra a humanidade, devido à conduta face à pandemia do novo coronavírus, talvez não tenhamos de esperar muito.

O TPI é considerado um marco na justiça internacional, mas países como Estados Unidos, Israel, Rússia, China, Índia e Irão continuam de fora. Se o TPI peca por alguma coisa não é certamente pelos eventuais crimes que pretende investigar, mas sim por outros que devia investigar e até agora não o fez. Precisamente por essa falta, alguns países africanos ameaçaram deixar o Estatuto de Roma, considerando que o TPI estava demasiado focado nos crimes cometidos em África e esquecia outros crimes cometidos noutros continentes. Um deles, sem dúvida, é a invasão do Iraque: foi feita com base numa mentira, mas até agora ninguém foi responsabilizado pelas mortes e sofrimento que essa mentira provocou. Desde 2003 que o Iraque mergulhou num caos que ninguém sabe quando poderá terminar.

Pinhal Novo, 14 de Junho de 2020
josé manuel rosendo






Os horrores da guerra na Líbia

Corpos carbonizados, Tripoli, junto à Brigada Khamis, em 29 de Agosto de 2011. Foto: jmr 
São crimes sem perdão. As Nações Unidas manifestaram-se horrorizadas perante a informação de pelo menos oito valas comuns descobertas na Líbia, numa zona a cerca de 60 km de Tripoli, após a tomada da região por forças governamentais. A informação foi avançada pelo Governo do Acordo Nacional (GNA), sediado em Tripoli, que tem o apoio da chamada “comunidade internacional” e que combate o Exército Nacional da Líbia (LNA), liderado pelo Marechal Khalifa Haftar.
Não se sabe ao certo quantos corpos estavam nestas valas comuns – e se elas de facto existem, mas a ONU pediu um inquérito independente e eficaz. Sabemos como isso é difícil num país mergulhado no caos após quase uma década de guerra. Aliás, o que tem acontecido na Líbia – tal como na Síria – justifica que sejam investigados os crimes de guerra e julgados os responsáveis. Desde os armazéns/prisão com corpos incinerados ainda nos dias em que Mohammar Kadhafi era o dono do país, até ao vale-tudo de uma guerra em que os líbios são já mais vítimas do que protagonistas.

Fonte: Al Jazeera em 7 de junho de 2020


Nos últimos dias verificou-se um recuo das forças do LNA. Parece ter falhado a tentativa de conquista de Tripoli e o Marechal Haftar reposiciona forças. Para isso muito terá contribuído também a retirada de centenas de mercenários russos (grupo Wagner) da linha da frente. De acordo com várias fontes estarão agora concentrados na província de Jufra, no centro do país, controlada pelas forças de Haftar. O Marechal rebelde (esteve exilado nos Estados Unidos depois de recrutado pela CIA na década de 1980 para tentar derrubar Kadhafi e esteve também no Conselho Nacional de Transição, que liderou a revolta e levou à queda de Kadhafi em 2011), conta agora com o apoio da Rússia, Egipto e Emirados Árabes Unidos. A ONU dá ainda conta da presença de mercenários do Chade e do Sudão.

Do lado do GNA, há o apoio da ONU, do Qatar, da Turquia e de mercenários sírios (alguns de grupos islamitas que combatiam Bashar Al Assad) enviados pelo Presidente turco.

A organização liderada por António Guterres “esbraceja” com um embargo de armas a que ninguém dá importância e todo o tipo de armamento continua a chegar ao país do Rei Idris.

Para não fugir à regra, as antigas potencias coloniais estão de olho no terreno e muito atentas ao que o futuro lhes reserva, não fosse a Líbia um enorme produtor de petróleo. A italiana ENI tem fortes interesses no país e o Governo de Roma acaba de vender duas fragatas ao Egipto (aliado de Haftar) por 1,2 mil milhões de euros, para além de outros contratos que chegam aos 10 mil milhões.

A França, tenta fazer diplomacia discreta e diz que teme uma “sirianização” da guerra na Líbia. O GNA acusa a França de apoiar Haftar, mas Paris desmente, sendo certo que ainda em Abril o GNA protestou devido a um voo de um caça Rafale francês nos céus da Líbia, sem autorização do Governo de Tripoli. Também em França, a Revista “Politique Internationale” distinguiu o Marechal Kalifa Haftar com o prémio de “Coragem Política”. A mesma revista que distinguiu recentemente Ursula von der Leyen, Alexis Tsipras e o Rei Abdullah (Jordânia), considera que Haftar está num combate decisivo contra o terrorismo islamita e contra o regime da Irmandade Muçulmana instalado em Tripoli (referência ao GNA).

No pântano que está criado na Líbia, a União Europeia – como sempre – diz que está preocupada e os Estados Unidos parece que não sabem o que fazer. Os Estados Unidos poderão sentir necessidade de estancar ambições turcas e russas na região e dá para desconfiar que, se alguma posição for tomada – há uma iniciativa do Egipto que aponta para um cessar-fogo – Washington terá em conta os efeitos que isso provocará nas eleições presidenciais já no final do ano. Donald Trump pode vir a precisar de uma guerra. Quem sabe se será a da Líbia.

PS – será importante para melhor perceber a guerra na Líbia, ver as companhias petrolíferas com interesses no país e também o fluxo de venda de armas de e para os países envolvidos.


Pinhal Novo, 14 de Junho de 2020
josé manuel rosendo

terça-feira, 2 de junho de 2020

A parvoíce na política ou o resultado de lideranças como as de Trump e Bolsonaro?


As pessoas têm o direito de pensar o que muito bem entenderem, desde que – linha vermelha – esse pensamento não tenha por objectivo aniquilar o pensamento e a liberdade dos outros. Parece razoável, ou não? Dito isto, acrescente-se que é real o perigo desta linha ser ultrapassada e não pode haver distracções.

Olhamos para o outro lado do Atlântico e o cenário é desgraçado: um Brasil entregue a quem nunca se cansou de elogiar a ditadura militar que durante duas décadas amordaçou os brasileiros; um Presidente cujas atitudes e boçalidade desprestigiam a função e o país; um governo cujos argumentos e atitudes, reveladas sem filtro num vídeo de uma dessas reuniões de governo, mostram bem a quem o Brasil está entregue.

Mais a norte, a desgraça é semelhante. Embora com uma democracia mais consolidada do que o Brasil, os Estados Unidos da América atravessam uma das suas piores crises, provocada e alimentada precisamente por aquele que deveria ser o primeiro a defender o regime democrático. A forma como está a lidar com o assassínio de George Floyd é um exemplo flagrante de um Presidente incapaz. Ainda há poucas horas fez-se fotografar de Bíblia na mão junto a um templo que tinha sido alvo de manifestantes. Nos Estados Unidos, tal como no Brasil, a pandemia foi desvalorizada e as alarvidades presidenciais confirmaram o que já se sabia de outros momentos: a inaptidão de Donald Trump para estar na Casa Branca, agravada com o descrédito internacional provocado pelo abandono de Tratados e Acordos com os quais os Estados Unidos estavam comprometidos.

Acontece que estes dois homens, Trump e Bolsonaro (que sabem muito bem o que querem), foram eleitos. Foram escolhidos em eleições das quais não há notícia de fraude que ponha em causa o resultado. Mas isso não significa uma carta-branca para fazerem tudo o que quiserem durante o mandato; ser eleito democraticamente não pode traduzir-se num mandato prepotente, de contornos autocráticos ou até ditatoriais. Não por acaso, em regimes democráticos, mesmo após eleições que lhes garantem apoios maioritários, há governos que não chegam ao fim das legislaturas. Isso acontece porque quebram o contrato com que foram eleitos ou porque ao longo do caminho não dão as respostas que a sociedade espera e precisa. A indignação das pessoas pode surgir a qualquer momento, indiferente aos calendários eleitorais.

Em Portugal, o que mais surpreende é que líderes como Trump e Bolsonaro continuem a ser considerados bons exemplos e a terem seguidores fiéis entre alguns políticos e comentadores. Geralmente, quem apoia um também apoia o outro. Apesar de todas as pulhices e falta de sentido de Estado que estes dois homens têm revelado, há em Portugal, à direita, quem encontre argumentos para os defender e até desviar atenções do que é essencial, culpando antecessores ou “inimigos externos” por tudo o que acontece nos Estados Unidos e no Brasil.

Em Portugal, encontramos, à direita, aqueles que começaram por apoiar Trump (e continuam) porque Barack Obama era quase um perigoso esquerdista e os que começaram por apoiar Bolsonaro (e continuam) porque consideram Lula e Dilma uma dupla de corruptos. Esta direita é aquela para a qual todos os argumentos servem e tudo é bom desde que não seja de esquerda. Encontramos também os que arrepiaram caminho, percebendo que nenhum deles (Trump e Bolsonaro) é solução para coisa alguma, e percebendo ainda que com lideranças assim a direita tem mais a perder do que a ganhar. Esses assumiram a discordância ou calaram-se. Encontramos por fim os que, escondidos ou dissimulados durante bastante tempo, encontraram finalmente as duas estrelas que lhes iluminam o caminho. São estas, podiam ser outras mas isso não interessa porque esta direita pode, finalmente, já sem pudor ou travão nas palavras, dizer abertamente o que pensa.

Sem falsos moralismos e com a consciência de que a luta política é, por vezes, feroz e “sem quartel”, o que as pessoas normais pretendem é apenas que Esquerda e Direita sejam civilizadas, que se batam por ideias e por aquele que entendem ser o melhor para o país, mas sempre com respeito, com cordialidade, sem violência física, sem ver a polícia a reprimir manifestações de forma violenta, com saber-estar, com elevação, sem arruaça nem boçalidade, sem arremedos de autoritarismo, sem desprezo pela Liberdade e pelos Direitos Humanos.

Se as pessoas não se sentirem enganadas e traídas, cansadas de promessas não cumpridas, cansadas de ver o país saqueado por gente nunca castigada, cansadas de promiscuidade e falta de transparência... se as pessoas não se sentirem assim, nunca votarão em líderes populistas e incendiários que apenas poderão agravar os problemas e nunca resolvê-los.

O que permitiu vitórias eleitorais nos Estados Unidos e no Brasil, dificilmente (nem com a ajuda de Steve Bannon) funcionará em Portugal, onde, mesmo com a memória do fascismo ainda bem presente, é surpreendente que exista, à direita, quem não consiga descolar de exemplos como os de Trump e Bolsonaro, julgando que isso vai render, algum dia, os dividendos pretendidos. À falta de melhor designação, parece uma parvoíce, e será bom que nenhuma noite eleitoral venha provar o contrário.

Neste momento, a esquerda (diversa e plural, e até com protagonistas que se estivessem à direita não se notaria a diferença...) tem a responsabilidade de não permitir que algum sentimento maior de desilusão leve as pessoas a preferirem líderes populistas e nefastos. Será bom que a esquerda não se convença que é suficiente confiar que irá prevalecer o bom-senso no momento das eleições. O diabo conhece atalhos.

Pinhal Novo, 2 de Junho de 2020
josé manuel rosendo

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2020

Onde estão os “irmãos” árabes dos Palestinianos?

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Mahmood Abbas, Presidente da Autoridade Palestiniana, na reunião do Conselho de Segurança das Nações Unidas,
em 11 de Fevereiro de 2020. Foto a partir da transmissão da ONU.

Ao ouvir o Presidente da Autoridade Palestiniana, Mahmood Abbas, e o embaixador de Israel Danny Danon, no Conselho de Segurança das Nações Unidas, a minha memória recuperou uma longa conversa com um velho palestiniano. Conversámos num hotel modesto de Jerusalém Oriental, onde ainda se podia fumar, beber café e conversar, sem bandos de turistas barulhentos em redor. Uma daquelas conversas em que temos a sensação de estar a “beber” História. Era um homem da Fatah, antigo professor universitário, laico e, talvez a referência principal que anotei, muito desiludido. Desiludido com tudo. Até com a própria Fatah e com a Autoridade Palestiniana, mas principalmente com os países árabes, alegadamente irmãos.

A voz era pesada. Pesada, porque era grossa e forte, e porque cada palavra tinha um sentido bem pensado e rigoroso. Disse-me ele a propósito da chamada Primavera Árabe – que considerava inevitável – que os líderes árabes, de tão corruptos e inseguros que alguns são, apenas se preocupavam com o seu próprio poder. Nada mais lhes preenchia a agenda, embora a retórica sobre a causa palestiniana incluísse palavras bonitas. A solidariedade ficava por aí, pelas palavras, e por despejar alguns milhões de dólares nos bolsos da Autoridade Palestiniana, que, dizia-me ele, estava, tal como os líderes árabes, preocupada apenas com o próprio poder.

Este homem contou-me também – para explicar a espontaneidade das revoltas árabes de 2011 – que a primeira Intifada (1987) começou da mesma maneira que as ruas do Cairo se “incendiaram”: sem direcção ou intervenção das forças políticas palestinianas. Os líderes foram surpreendidos pela revolta popular e limitaram-se a apanhar, e depois dirigir, essa revolta.

A reunião de terça-feira no Conselho de Segurança da ONU trouxe-me de volta a memória desta conversa, quando o embaixador de Israel na ONU, Danny Danon, “atirou à cara” de Mahmood Abbas a atitude de líderes árabes que assinaram Tratados de Paz com Israel. Foi o caso do antigo presidente egípcio, Anwar Sadat, e do Rei Hussein, da Jordânia. Com os exemplos dados, o diplomata israelita passou uma mensagem muito clara: os palestinianos estão sozinhos, não esperem ajuda dos vossos amigos árabes. E tem razão. É longa a história de desentendimentos entre os países árabes quando se trata de objectivos comuns. Cada um trata de si. O funcionamento e o impacto quase nulo das decisões da própria Liga Árabe, é um exemplo dessa forma de estar. O actual momento do conflito israelo-palestiniano seria o ideal para os países árabes falarem a uma só voz. Falar e fazer algo de concreto.

Tudo isto não anula a validade dos argumentos de Moahmood Abbas perante o Conselho de Segurança. Abbas rejeita o plano de Donald Trump e contrapõe a exigência de haver primeiro uma solução política, e depois pode haver ajuda económica, que até será bem-vinda. Ao contrário é que não!
Perguntou ainda Abbas quem pode oferecer Jerusalém como se fosse um presente (alusão ao reconhecimento feito pelos Estados Unidos de Jerusalém como capital indivisível de Israel)? Volta a ter razão, mas esqueceu-se que até estava sentado à sua frente, no Conselho de Segurança, o representante do mesmo Reino Unido que ofereceu – Declaração Balfour -  um Lar Nacional para o Povo Judeu, num território que não pertencia ao Reino Unido. Ou seja: Trump “oferece” o que não lhe pertence, tal como o Reino Unido fez, já lá vai um século.

Mahmood Abbas está carregado de razão, no que ao Plano de Donald Trump diz respeito, mas esquece-se que tem sido com a actual Autoridade Palestiniana que as aspirações palestinianas têm vindo a ser sucessivamente eliminadas. Seja por culpa própria – desmobilização da sociedade palestiniana em torno das reivindicações nacionais – seja porque a nível internacional a causa palestiniana apenas tem apoio retórico, notando-se neste plano a falta de qualquer acção concertada por parte dos países árabes “irmãos”.

Em termos muito pragmáticos a realidade no terreno é fácil de definir: na Faixa de Gaza, controlada pelo Hamas, não há uma única bota israelita; na Cisjordânia, controlada pela Autoridade Palestiniana, a realidade do território é aquela que consta do mapa exibido por Mahmood Abbas no Conselho de Segurança da ONU. E não, que não se acuse esta leitura de ser pró-Hamas, ou pró-terrorismo ou pró-outra-coisa-qualquer que, dá para adivinhar, é o primeiro argumento a sair da cartola. Não é nada disso. É apenas olhar para a realidade no terreno e ler o que têm sido as mais recentes décadas com a causa palestiniana sempre a perder terreno. O Estado da Palestina, se nada mudar, poderá quanto muito resumir-se a umas bolsas de terreno dentro do Estado de Israel.

Pinhal Novo, 12 de Fevereiro de 2020
josé manuel rosendo


quarta-feira, 1 de janeiro de 2020

Bagdad quase a arder

Foto do assalto à embaixada dos Estados Unidos em Teerão, Novembro de 1979. Autor desconhecido.
Ao olharmos para os acontecimentos por estes dias em Bagdad, é inevitável recordarmos o que se passou há 40 anos em Teerão. No início de Novembro de 1979, após dias de manifestações, a embaixada dos Estados Unidos foi tomada de assalto. Os manifestantes fizeram dezenas de reféns e a crise durou 444 dias. A crise dos reféns, assim ficou conhecida. 

Durante esta crise, os Estados Unidos falharam todas as tentativas diplomáticas para resolver a crise, falharam tentativas militares – pagaram um preço elevado – o Ayatola Khomeini reforçou o poder e Jimmy Carter perdeu a reeleição. A tomada da embaixada norte-americana foi o epílogo de décadas de apoio norte-americano ao Xá Reza Pahlevi. O Xá tinha-se oposto à nacionalização da companhia de petróleos e essa posição fez com que afastasse e prendesse o Primeiro-Ministro. O Xá tornou-se um ditador e a revolução era inevitável.

40 anos depois, em Bagdad, Iraque, a embaixada norte-americana também é o alvo dos protestos. Os manifestantes invadiram o campo da Embaixada situada na supersegura “Zona Verde” da capital iraquiana, vandalizaram zonas de segurança e hastearam bandeiras e cartazes com palavras de ordem hostis aos Estados Unidos. Gritou-se “morte à América!”. O motivo foi a morte de pelo menos 25 combatentes das Brigadas do Hezbollah (Kataib Hezbollah - a versão iraquiana do Partido de Deus) nos bombardeamentos norte-americanos a alvos em território iraquiano. 

Durante o “ataque” à embaixada norte-americana, as forças iraquianas não se opuseram e apenas as Forças de Mobilização Popular (brigadas xiitas fiéis ao Irão) acabaram com o protesto, dando ordem para desmobilizar e dizendo que a mensagem já tinha sido entendida em Washington.

Os Estados Unidos acusam o Irão de estar por detrás do “ataque” à embaixada e Donald Trump disse ao governo iraniano que vai pagar um alto preço de algo de grave acontecer à embaixada ou ao pessoal diplomático; O Irão (que já tinha classificado os bombardeamentos norte-americanos como actos terroristas) respondeu que é preciso ter uma grande “audácia” para matar 25 iraquianos e depois acusar o Irão de ser o responsável pelas manifestações de fúria dos iraquianos. Entretanto, Trump deu ordens para o envio de 750 militares norte-americanos para o Koweit (faz fronteira com o Iraque).

Perante os acontecimentos dos últimos dias, é preciso ter em conta o seguinte:
- Este protesto específico no Iraque relega para segundo plano as manifestações que saem à rua desde 1 de Outubro e em que a classe política é acusada de corrupção. Os manifestantes exigem “a queda do regime”. O país está paralisado.
- No Irão, a situação política interna também é de grande convulsão devido ao aumento do preço dos combustíveis e nas últimas semanas as organizações não governamentais referem cerca de 1.500 mortos.
- Nos Estados Unidos, Donald Trump enfrenta um processo de destituição e tem eleições daqui a menos de um ano. Parece que a todos interessa afastar as atenções sobre o que é realmente importante em termos internos e arranjar o habitual inimigo externo que serve para unir as hostes e fortalecer quem está no poder.

O resultado dificilmente será bom.

Pinhal Novo, 1 de Janeiro de 2019
josé manuel rosendo

terça-feira, 29 de outubro de 2019

Donald Trump, o cão, e Abu Bakr al Baghdadi


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Abu Bakr al Baghdadi, aquando de uma alegada entrevista à Agência de Media do Estado Islâmico, Al Furqan.


O Presidente dos Estados Unidos há muito que nos habituou a uma desbragada incontinência verbal, mas ao contrário da tese de que não pode ser levado a sério, será de bom conselho estar muito atento a tudo o que diz. Não apenas porque é o Presidente da (ainda) maior potência mundial mas porque, podendo parecer apenas paleio de fanfarrão, tudo tem um sentido e um objectivo. A única coisa que permanece um mistério é se as frases que se transformam em notícia são da autoria do próprio ou têm origem no círculo que o apoia e lhe escreve os discursos e/ou as sequências de mensagens no twitter. De uma forma ou de outra, a mensagem representa o pensamento da actual administração norte-americana.

Donald Trump anunciou a morte de Abu Bakr al Baghdadi dizendo que o líder do Estado Islâmico se fez explodir num túnel durante uma operação de forças de elite norte-americanas no noroeste da Síria: “o bandido que tanto queria intimidar os outros passou os seus últimos momentos em pânico total, cheio de medo, aterrorizado pelas forças norte-americanas que o perseguiam”. Trump descreveu o momento ainda mais com mais pormenores: “morreu depois de correr num túnel sem saída, gemendo, chorando e gritando”, acrescentando que o líder do Estado Islâmico fez explodir um colete de bombas, suicidando-se e matando os três filhos que estavam com ele. Dito isto, Donald Trump rematou: “Morreu como um cão”. Não satisfeito, reforçou: “ele não morreu como um herói, morreu como um cão”.

É a esta frase (morreu como um cão) que é preciso dedicar especial atenção. Se os pormenores da operação dão que pensar, quanto mais não seja porque a fonte – Trump – não é de confiança, a comparação de Abu Bakr al Baghdadi a um cão, é um insulto que pode escapar aos não muçulmanos mas é profundamente significativa para a maioria dos seguidores do Islão. E, não querendo ficar por aqui, menos de 24 horas depois, eis que Donald Trump volta à carga, revelando que o líder do Estado Islâmico tinha sido encontrado por um...cão.  Através do twitter, o Presidente dos Estados Unidos revelou a foto (desclassificada) do “herói” mas disse que o nome do cão é mantido em segredo.

Foi encontrado por um cão e morreu como um cão, assim Donald Trump quis deixar vincada a morte do líder do Estado Islâmico. Com estas duas frases, Donald Trump tenta humilhar o inimigo, depois de morto, e ao mesmo tempo todos os Muçulmanos. E como não fossem suficientes todas as referências que já tinha feito a Abu Bakr al Baghdadi, Donald Trump ainda fechou uma conferência de imprensa na Casa Branca dizendo que “era um animal, um animal sem coragem”. Para além de constituírem uma fanfarronice, todas estas frases são uma imprudência perigosa. Não se humilham os inimigos e Donald Trump devia saber. Ou alguém lhe devia dizer.

Acossado internamente com um processo de destituição quase certo e desacreditado externamente em diferentes negociações de que não se vislumbra fim nem consequências, Donald Trump aposta na fuga para a frente, não medindo, ou estando-se nas tintas, para o mal que pode provocar ao mundo quando procura ofender a comunidade muçulmana desta forma. Verdade seja dita que um facínora como o líder do Estado Islâmico não fica a fazer qualquer falta, mas a ofensa e a humilhação ao inimigo eram dispensáveis, um verdadeiro estadista nunca as faria, e nada podem trazer de bom.

Sem surpresa, a elegância no trato e a ponderação nas palavras é algo que, definitivamente, não podemos esperar de Donald Trump. Mas também é algo obrigatório na atitude de um Presidente, dos Estados Unidos ou de qualquer outro país.


Pinhal Novo, 29 de Outubro de 2019
josé manuel rosendo