Espanha é uma democracia. Formal, mas é uma democracia. Tal
como Portugal. E sendo uma democracia formal seria de esperar que, pelo menos
em termos formais, a Liberdade fosse um pilar respeitado. Depois de tudo o que
fez o governo de Madrid e depois da declaração do Presidente do Governo,
Mariano Rajoy, ficámos a saber que não é assim.
Em relação à Catalunha e ao Referendo agendado para 1 de
Outubro, é preciso dizer uma coisa muito simples: como pode ser negado aos
catalães o direito de se pronunciarem sobre a eventual independência da região.
Cada um de nós pode ser a favor ou contra a independência da Catalunha, podemos
ter os mais variados argumentos, mas o direito de o outro decidir em liberdade
o que pretende para si e para o seu povo, é um direito que está na génese de
qualquer regime democrático e ninguém tem o direito de negar esse direito aos
catalães.
Desde logo, o argumento da inconstitucionalidade do
Referendo é absolutamente irrelevante. Duvido que em algum país a Constituição
preveja a possibilidade de perda de território através de um mecanismo legal.
Sendo o território um dos pilares do Estado, indispensável para a sua
existência, não faria sentido que o próprio Estado, através da Constituição, estabelecesse
mecanismos para eventuais secessões e consequente redução do seu território.
Assim sendo e perante a evidência de que uma parte dos
catalães é a favor da independência, a única forma de resolver o impasse teria
sido a negociação política de modo a que, legalmente – com as necessárias
alterações e adaptações constitucionais e legislativas - e democraticamente, se chegasse a uma
consulta popular que permitisse aos catalães manifestarem a sua vontade e tirar
daí as devidas ilações.
Sabemos como o governo de Madrid foi adiando, ignorando e
empurrando com a barriga, a eventual construção de uma solução legal que
conduzisse ao Referendo. Os catalães foram sempre dizendo que mais tarde ou
mais cedo iria acontecer o que está a acontecer. Chegado o momento decisivo eis
que o governo de Madrid reage da forma esperada: detém responsáveis políticos
catalães, invade as instituições, envia reforço policial, e por aí fora...
Madrid, qual Rainha destemida, quer vergar os súbditos, à força e, se
necessário – percebe-se – à paulada. Alguns catalães já lembraram tempos idos
em que Madrid os tratou à paulada. A única coisa que Rajoy terá conseguido até
agora foi dar força aos independentistas.
De Barcelona a Erbil, de Madrid a Bagdad
Curiosamente, no Curdistão iraquiano, o principal argumento
do Governo (de Bagdad) iraquiano é precisamente o mesmo que é utilizado em Madrid:
o referendo é inconstitucional! Claro que também no caso do Iraque a
Constituição não prevê referendos que possam alterar a integridade territorial
do país. A questão é a mesma e o motivo é simples: não há poder político que ao
fazer uma Constituição caia na “asneira” de abrir a porta à possibilidade de
ver o seu território reduzido, simplesmente porque isso significa ter o seu
estatuto internacional reduzido. Menos território significa, menos população,
menos economia, menos recursos, menos tudo.
Mas se no Curdistão iraquiano – escrevo a poucas horas do
início do referendo – a consulta popular vai mesmo avançar é porque a autonomia
curda tem características completamente diferentes da catalã, e a geografia
onde catalães e curdos estão inseridos são também diferentes. Desde logo, o
Curdistão faz parte de uma República Federal. Há “interesses” que levam a estas
exigências de referendar uma eventual independência? Claro que há, como há “interesses”
em tentar travar esse caminho. Há interesses económicos, estratégicos, políticos,
projectos pessoais, há isso tudo. Haverá sempre “interesses” na política, o que
não pode é haver desculpa para, em nome da liberdade e da democracia, impedir
que os povos se expressem em relação ao futuro que só a eles cabe decidir.
Quer em relação à Catalunha, quer em relação ao Curdistão, verifica-se
que são forças políticas de direita que controlam o poder político regional
nestes tempos de referendo à independência, mas não é isso – esquerda/direita –
que está em causa. Há também um receio de “efeito dominó”. No caso da
Catalunha, Madrid treme só de pensar que outras comunidades autónomas possam
seguir as pisadas da Catalunha. Por exemplo País Basco, Galiza... no caso do
Curdistão iraquiano esse receio é partilhado por países onde há grandes
comunidades curdas como é o caso da Turquia, Síria e Irão, e há ainda uma parte
substancial da comunidade internacional que acena com o papão de uma eventual
independência curda prejudicar a luta contra o Estado Islâmico. Essa parte
substancial da comunidade internacional que não saiu das suas tamanquinhas
quando os curdos tinham o Estado Islâmico a bater-lhes à porta e tiveram de ser
eles a travar os extremistas. Dessa batalha com o Estado Islâmico resultou a
ocupação de território que não está incluído na actual Região Autónoma do
Curdistão, mas que os curdos agora reclamam, como é o caso de Kirkouk (a “Jerusalém
do Curdistão”, como lhe chamou o antigo presidente iraquiano Jalal Talabani por
causa da sua característica multietnica e multicultural).
Curdos e catalães estão à beira de jogar uma cartada
decisiva. Do lado dos defensores do referendo a semelhança do argumento de que
o poder (central num caso, federal no outro) já não é um parceiro; do lado dos
opositores também o mesmo argumento: a consulta é ilegal e inconstitucional. Por
que é que não deixam o povo decidir?
Pinhal Novo, 25 de Setembro de 2017
josé manuel rosendo
Sem comentários:
Enviar um comentário