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domingo, 19 de julho de 2020

A guerra na Líbia, o Sultão e o Faraó

 
Principal Oração de sexta-feira, em Benghazi, 4 de Março de 2011, poucos dias depois do início da revolta que fez cair Mohamar Kadhafi. Foto de arquivo: jmr
Falemos em primeiro lugar dos homens que não gostam de ser contrariados. Faz parte das características de quem se julga todo-poderoso, dono da terra que pisa e do Céu que espera alcançar. Quem lhes faz frente, já sabe que se pode dar mal. Recep Teyyip Erdogan e Abdel Fatah al-Sissi, Presidentes da Turquia e do Egipto, por esta ordem, afiam as facas e centram atenções na Líbia.

Erdogan, 66 anos, economista, foi Primeiro-ministro da Turquia desde 2003 até ser Presidente, desde 2014, governa com mão-de-ferro e varre quem se lhe opõe; Al-Sissi, 65 anos, militar, Ministro da Defesa do Egipto entre 2012 e 2014, até chegar a Presidência da República, faz parte do grupo de autocratas que não se inibem de “ser eleitos” com quase 100% dos votos, tendo liderado o golpe militar que afastou o Presidente Mohammed Morsi, precisamente o homem que o nomeara Ministro da Defesa.

Ao breve perfil dos dois homens que podem vir a enfrentar-se na guerra na Líbia, juntemos agora a questão da geografia. A Turquia (entre o Médio Oriente/Ásia e a Europa) e o Egipto (entre o Médio Oriente e África) estão envolvidos em conflitos/guerras em relação às quais dificilmente podem ser apenas meros observadores.
Na Síria, que tem fronteira com a Turquia, a questão Curda, foi factor decisivo para o envolvimento de Erdogan. Na Líbia, a questão é diferente e Erdogan assume claramente a atitude do Sultão que não perdeu a esperança de restaurar o Império, seja qual for a forma que o Império venha a ter, ao mesmo tempo que até pode dizer que apoia a facção (Governo) que tem o reconhecimento das Nações Unidas.
Al-Sissi, líder do país árabe mais populoso, herdeiro de uma civilização que foi terra de Faraós e ponte entre a Ásia e a África, foz do Rio Nilo, detentor das chaves do Canal do Suez, quer ter uma palavra a dizer no futuro da região.

Turquia e Egipto são dois países que precisam de expandir influência, quiçá precisam de alargar o espaço vital – essa necessidade que tantos males já provocou à humanidade – se não literalmente, pelo menos de forma a terem influência directa noutros países.

A situação política interna em cada um deles é, também, factor a ter em conta e pode levar à solução clássica de encontrar um inimigo externo para o consequente toque a rebate em torno da bandeira nacional, relegando para segundo plano as querelas internas.  
A guerra na Líbia surge também como o possível palco em que Erdogan e Al-Sissi se preparam para acertar contas antigas. Contas que começaram a ser feitas aquando do golpe militar (2013) no Egipto, com que Abdel Fatah Al-Sissi afastou Mohammed Morsi (e a Irmandade Muçulmana) do poder. Erdogan via na Irmandade uma aliada, quiçá uma ponte para que o novo Sultão voltasse a estender o Império que já teve capital em Istambul.
E se a Turquia já está presente na Líbia, com meios, militares e milícias, que apoiam o governo líbio sedeado em Tripoli, e que tem o apoio da ONU, o Egipto dá todos os sinais de querer entrar nesta guerra, mas ao lado do Marechal rebelde Khalifa Haftar.

Dos últimos dias vem o apelo do parlamento de Tobruk, aliado de Khalifa Haftar, para que as tropas egípcias atravessem a fronteira e façam frente às forças do Governo de Tripoli, apoiado pela Turquia. As tribos da Cirenaica (região este da Líbia) alinham com o apelo lançado ao Egipto. Al-Sissi já traçou uma linha vermelha: “os canhões” egípcios podem entrar na guerra se as forças turcas e do governo de Tripoli relançarem o assalto a Sirte, cidade que é porta de acesso à maior zona de terminais de exportação de petróleo.

A Turquia, que não foi chamada a entrar na guerra na Síria, mas entrou, foi chamada a entrar na guerra na Líbia, na qual também já entrou, mas acusa o Egipto de não ter legitimidade para entrar no conflito. A Turquia está a acusar o Egipto de algo muito semelhante ao que a própria Turquia fez na Síria.

O que fica bem visível nas atitudes de Erdogan e Al-Sissi é que são partidários da conhecida “fuga para a frente”: cada um deles já tem “frentes de guerra” para preocupações suficientes, mas ainda assim não se esquivam a mais uma.
Vejamos: a Turquia enfrenta há décadas a rebeldia do PKK (Partido dos Trabalhadores do Curdistão), bombardeia com frequência alvos do PKK no norte do Iraque, está envolvida na guerra na Síria, tem 3 milhões de refugiados que ameaça deixar avançar para a Europa, compra sistemas de mísseis à Rússia enquanto é membro da NATO e, talvez fonte principal da deriva geopolítica, já esqueceu uma eventual entrada na União Europeia; o Egipto, com um regime ditatorial disfarçado, tem problemas com os ataques terroristas no Sinai, tem problemas com a oposição que, embora fortemente perseguida vai dando sinais de presença, enfrenta um gravíssimo problema por causa das águas do Rio Nilo (a relação com a Etiópia e Sudão pode descambar) e enfrenta obviamente a contaminação provocada pela guerra na vizinha Líbia.

A Líbia promete ser um campo de batalha com consequências muito para além das suas fronteiras. De um lado temos o Governo (reconhecido pela ONU) de Fayez Al Sarraj, com o apoio da Turquia, Qatar e fortes milícias com influência da Irmandade Muçulmana; do outro lado, o Marechal Khalifa Haftar, com o apoio da Rússia, Emirados Árabes Unidos, Arábia Saudita e Egipto.
Parece complicado, mas ainda não é tudo: falta referir que os Estados Unidos e a França também apoiam o Marechal rebelde e que a Itália apoia o Governo de Tripoli. Aspecto importante: o Egipto é o país árabe que mais apoio militar recebe dos Estados Unidos.
Não deixa de ser curioso que Estados Unidos e Rússia apoiem o mesmo campo; que países europeus estejam em campos opostos (onde está a política externa da União Europeia?) e que países da NATO também estejam em campos opostos. Por último (e podemos encontrar mais “contradições”) sublinhe-se que a Turquia e a Itália (de forma mais discreta) são os únicos protagonistas a apoiarem o Governo que é reconhecido pelas Nações Unidas.

Tudo isto porque a Líbia tem petróleo, muito petróleo, e o Mediterrâneo (com as riquezas que lá estão) é um território que todos querem influenciar, para além do poder que as potências regionais pretendem alargar.

Pinhal Novo, 19 de Julho de 2020
josé manuel rosendo

terça-feira, 18 de outubro de 2016

Mossul, todos a querem. A que preço, não importa…

Esta foto foi tirada há um ano, em Bashika, onde a Turquia tem uma base militar para formação de forças curdas e sunitas. Daqui partem os Peshmerga curdos que estão a combater o Estado Islâmico. Mossul fica a uma dezena de quilómetros.

Sem nenhuma dúvida, as noites em Mossul são mal dormidas. Por esta hora, acredito, ninguém quererá fazer a (adaptada) pergunta: Mossul já está a arder? A pergunta, a original, terá sido feita por Adolf Hitler já em fase de desespero, quando os aliados entraram em Paris e os nazis perdiam batalhas sucessivas. Paris não chegou a arder. Não consta que o Estado Islâmico prefira ver Mossul arder devido à iminência de uma derrota militar face ao ataque iniciado esta segunda-feira, mas desta vez, e ao contrário de Paris, quem parece disposto a incendiar Mossul são os que atacam a cidade.

Em Dezembro do ano passado, regressado da região, fiz a pergunta (E depois do Estado Islâmico?) http://meumundominhaaldeia.blogspot.pt/2015/12/e-depois-do-estado-islamico.html e disseram-me que estava com pressa. Não estava. A questão era (é) mesmo essa, porque eu bem ouvi o que os curdos iraquianos diziam. Quem considerava que eu estava com pressa dizia-me então que primeiro era preciso derrotar o Estado Islâmico e depois logo se via. Errado. Mossul não é Faluja, nem Ramadi. Conquistar Mossul ao Estado Islâmico e manter a cidade sem criar um novo foco de guerra exige um plano para o pós Estado Islâmico. Um plano que seja do agrado de todos os que estão envolvidos neste ataque a Mossul. O problema é que são muitos os interesses e um plano assim parece impossível. Quem ataca a cidade converge na necessidade de tirar Mossul das mãos do Estado islâmico, mas diverge em tudo o resto. E basta estar atento às mais recentes declarações para se perceber que não há plano nenhum.

Depois de uma primeira ofensiva falhada no início da Primavera, desta vez parece que é para levar até ao fim. Forças do governo de Bagdad, milícias xiitas (Unidades de Mobilização Popular), milícias de tribos sunitas, milícias iranianas, milícias do Hezbollah, Peshmerga curdos, forças fiéis ao antigo governador de Mossul, norte-americanos e turcos no terreno, e ataques aéreos da coligação internacional. Não muito longe andam os guerrilheiros do PKK e das Unidades de Protecção Popular (sírias), bem como milícias Yazidis. A lista, certamente, não é completa, mas suficiente para se perceber como vai ser difícil decidir quem fica a controlar Mossul.

Não se sabe ao certo quantos habitantes tem a cidade (a ONU refere 1,5 milhões) nem quantos são os combatentes do Estado Islâmico. Mas a coisa pode correr muito mal. Um coordenador da ONU para os Direitos Humanos já alertou: “não acusem os civis de Mossul de pertencerem ao Estado Islâmico, e que não haja execuções sumárias, nem de civis nem de membros do Estado Islâmico”. O tom do aviso deixa claro o que pode acontecer. Ainda a ONU alerta para uma nova vaga de refugiados e faz saber do perigo de os habitantes ficarem encurralados no fogo cruzado, podendo ser vítimas de franco-atiradores ou serem utilizados como escudos-humanos. A ONG Save the Children alerta para mais de meio milhão de crianças em risco.

Alguns analistas consideram que nesta batalha joga-se o futuro do Iraque enquanto país com as actuais fronteiras. O governo do Iraque joga também o tudo ou nada, devido às sucessivas crises políticas mas, mesmo derrotando o Estado Islâmico, pode vir a revelar-se incapaz de gerir a situação futura, que pode degenerar numa efectiva desintegração do país.
Antes do ataque, aviões iraquianos lançaram panfletos na cidade aconselhando a população a ficar em casa e prometendo não atacar alvos civis, mas é impossível prever a evolução da batalha e a reacção da população.

As próximas horas vão fornecer indicadores mas as mais recentes declarações são um sinal claro do caldeirão em que Mossul pode ser transformada. Moqtada al Sadr, poderoso clérigo xiita que liderou o exército de Mahdi no combate à ocupação norte-americana, disse que a batalha de Mossul é uma guerra entre o governo de Bagdad e os terroristas e que o Iraque deve recusar o apoio turco em nome da soberania iraquiana; o Presidente turco, Erdogan, disse que “está fora de questão a Turquia ficar fora da ‘operação Mossul’” acrescentando que a Turquia estará na operação militar e também na (futura) mesa de negociações; o parlamento iraquiano já votou uma moção em que considera a presença turca como “ocupação” e violação de soberania”. Sendo a maioria da população de Mossul de origem sunita, não se sabe como vai reagir à entrada de milícias e tropas xiitas. O antigo governador de Mossul – aliás, acusado de ser o responsável pela queda de Mossul às mãos do estado Islâmico em 2014 – lidera uma milícia fiel, que é apoiada pela Turquia e propõe-se ser mediador entre as forças xiitas e os habitantes da cidade. Também a ter em conta que é a primeira vez que Peshmerga curdos e forças de Bagdad combatem lado-a-lado numa operação militar. Os curdos dizem que não têm interesses em Mossul mas vão ocupando algumas zonas que foram conquistando ao Estado islâmico. Em termos de declarações mais recentes, a cereja no topo do bolo veio de Moscovo, com a Rússia – acusada de crimes de guerra na Síria - a dizer que espera que a coligação internacional no Iraque tenha uma acção com precisão que evite vítimas civis.

Várias fontes referem 30 mil homens no ataque a Mossul, que estará defendida por cerca de 4 a 8 mil combatentes do Estado Islâmico. Não se sabe onde está o “califa” Abu Bakr al Bagdadi; não se sabe como será possível distinguir entre combatentes e civis (numa cidade com mais de um milhão de habitantes). É impossível prever o tempo que esta operação vai demorar mas alguns analistas apontam para um final de batalha em zona urbana, rua a rua, casa a casa. Mossul ainda não está a arder, mas são muitas as colunas de fumo negro e a dimensão do que está em jogo é de tal ordem que se alguém temer o pior não pode ser acusado de pessimismo.

Pinhal Novo, 18 de Outubro de 2016

josé manuel rosendo

quinta-feira, 8 de setembro de 2016

Síria, algo se vai passar, ou não…


Durante semanas, meses, das negociações para resolver a guerra na Síria apenas se ouvia dizer que estavam paradas, bloqueadas. As iniciativas do enviado especial da ONU para a Síria, Staffan de Mistura, deram em nada. No terreno, todos os dias, combates, bombardeamentos, cercos, massacres, crimes de guerra, populações em fuga. Novidade já com duas semanas: a Turquia entrou na guerra, meteu homens e máquinas Síria adentro com o argumento de combater o Estado Islâmico e as milícias curdas das Unidades de Protecção Popular. Não deixa de ser curioso que, depois de muitas ameaças, e de situações de ameaça idêntica pela proximidade do Estado Islâmico – lembram-se de Kobani? – só depois de resolvido o diferendo com a Rússia, a Turquia tenha avançado de forma directa para esta guerra. Aliás, a Turquia disse que avisou o Governo de Damasco, através do amigo russo. 

A juntar a essa relação (Turquia/Rússia) retomada, afirmações dos mais altos responsáveis turcos devem ser tidas em conta. A 2 de Setembro, o Primeiro-Ministro turco, Binali Yildirim, foi taxativo: “Normalizámos as nossas relações com a Rússia e Israel. Agora, se Deus quiser, a Turquia tomou uma iniciativa séria para normalizar as relações com o Egipto e a Síria”. Esta declaração não deixa margem para outra leitura a não ser que a Turquia mudou radicalmente de posição relativamente a Bashar al Assad. Até agora, o Presidente sírio era visto de Ankara como uma carta forçosamente fora do baralho; agora já não é.

Outra declaração importante: o vice-primeiro-ministro disse que a Turquia é favorável a uma operação comum com os Estados Unidos contra Raqqa, a capital do Estado Islâmico na Síria. Este governante disse que o assunto foi tratado entre os dois presidentes à margem da Cimeira do G20 e está a ser discutido. O Presidente turco lançou também a ideia de uma zona de exclusão aérea no norte da Síria. E há ainda outro dado: a 23 de Agosto o presidente turco encontrou-se com o Presidente do Curdistão Iraquiano. Oficialmente falaram da actividade da organização de Fethulla Gulen na região mas há rumores de que terão feito uma aliança contra os outros curdos, nomeadamente do PKK e das Unidades de Protecção Popular.

Talvez seja difícil digerir todas estas componentes do conflito mas pelo meio disto, o enviado especial de Barack Obama para a coligação que combate o Estado islâmico, encontrou-se com as milícias curdas das FDS (Forças Democráticas da Síria – junta milícias curdas e árabes). Encontrou-se também com representantes turcos. É o que diz o Departamento de Estado. Os turcos querem os curdos fixados a este do Rio Eufrates, os Estados Unidos tentam convencê-los a recuar para essa zona, mas os curdos conquistaram ao Estado Islâmico a cidade de Manjib (a oeste do Eufrates) e têm por objectivo controlar todo o norte da Síria que faz fronteira com a Turquia.

A Rússia e Bashar al Assad têm falado menos. Tentam consolidar posições no terreno. Têm tido algum sucesso mas também alguns revezes. Uma coisa é conquistar posições, outra é ter capacidade para mantê-las com forças massacradas por 5 anos de guerra.

A oposição síria reunida no Alto Comité de Negociações apresenta um plano em 3 fases: primeiro, seis meses de trégua e negociações; segundo, 18 meses de governo de transição, mas Bashar al Assad tem de ir embora; por fim, eleições com o apoio e supervisão das Nações Unidas. Já se vê que esta solução, tendo o mérito de pretender parar o banho de sangue, não vai vingar.

Para fechar este leque de questões, durante dois dias (8 e 9 de Setembro) Sergueï Lavrov e John Kerry – os homens que mereceram da Al Jazeera uma série de artigos com o título “Atracção Fatal” – vão estar juntos a debater a situação na Síria. O que eventualmente podem tirar da cartola, ninguém sabe, mas já estamos naquela fase em que a maioria das apostas vai no sentido de que tudo vai ficar como está. De há muito que esta guerra na Síria é um tabuleiro de xadrez em que vários jogadores movimentam várias peças em simultâneo. Nenhum consegue saber o que todos os outros pretendem e o que vão fazer na próxima jogada.

Ainda assim, as peças do puzzle parecem começar a acomodar-se. Mas não nos iludamos. Talvez ainda não tenha acabado de ler este texto e tudo pode já estar diferente.

Pinhal Novo, 8 de Setembro de 2016

josé manuel rosendo

quarta-feira, 9 de março de 2016

A Turquia à procura de uma política externa


A Turquia está mal com a Rússia, está mal com a Síria de Bashar al Assad, está assim-assim com Israel, está assim-assim com a NATO e os Estados Unidos, e não se sabe como está com a União Europeia. Nem é preciso falar da questão curda, porque a Turquia continua a bombardear posições dos curdos na Síria. Com os curdos iraquianos a questão é diferente. Depois, continua a ser acusada de apoiar alguns grupos extremistas envolvidos na guerra na Síria. A par disso, em termos internos, a maioria das atitudes do governo turco contrariam os valores que deviam ser respeitados atendendo a uma eventual entrada na União Europeia, nomeadamente os vários ataques à liberdade de imprensa. Isto significa que a chamada política “zero problemas” com os vizinhos é já um assunto do passado. Já não existe.

O actual Primeiro-Ministro turco, Ahmet Davutoglu é o teórico da política externa turca dos últimos anos. Em termos gerais, a política de “zero problemas” com a vizinhança assentava na ideia da estabilidade regional para o desenvolvimento da Turquia e o país colocava as questões económicas no topo da agenda das relações internacionais. O líder do PKK, Abdullah Ocalan estava preso, o Partido da Justiça e do Desenvolvimento (de Erdogan) estava no poder e a Turquia queria aderir à União Europeia. Duas destas premissas mantêm-se, mas quanto à União Europeia, as dúvidas são muitas.

Quando eclodiram as revoltas da Primavera Árabe, a Turquia foi apontada como possível modelo e exemplo a seguir. Um país muçulmano, em que o Estado, dizia-se, estava separado do poder religioso. O Ocidente achava que sim e que podia ser essa a fórmula para travar os movimentos islamistas nos países da Primavera Árabe. E a Turquia também gostou da ideia. Aliás, a possibilidade da Turquia retomar influência nos países em ebulição no Mediterrâneo Oriental e no Norte de África seria assim como que um regresso ao antigo espaço do Império Otomano. A Turquia tinha ainda o lastro da zanga com Israel por causa do ataque israelita ao navio turco que tentou furar o bloqueio à Faixa de Gaza e bater o pé a Israel é sempre algo muito simpático para o mundo árabe. 

Em determinado momento, a Turquia apostou claramente na aproximação aos vizinhos, na tentativa de ganhar influência regional em detrimento da aproximação ao Ocidente e à União Europeia, embora nunca tenha assumido essa estratégia. O problema é que quase tudo mudou. Ocalan continua preso e Erdogan no poder, mas o Irão está mais forte, as relações com Israel foram normalizadas, os curdos marcam pontos e a aposta turca na queda de Assad demora a concretizar-se. Entretanto a Turquia está inundada de refugiados e enfrenta uma maior actividade dos independentistas curdos. A Turquia parece que voltou a aproximar-se do Ocidente e da União Europeia (pelo menos para receber o cheque de apoio aos refugiados que a União Europeia não quer ver chegar ao velho Continente), mas a política “zero problemas” está definitivamente enterrada.

A Turquia, por imposição da geografia, é de facto a ponte entre o Ocidente e o Oriente, mas aproveitar essa mais-valia para construir uma política externa coerente e sem demasiadas ambiguidades é uma tarefa difícil quando tudo à volta parece estar a desmoronar-se. Talvez por isso, a política externa da Turquia parece um barco de refugiados perdido no Mar Egeu, movido a remos e muito ao sabor das marés. Veremos qual a terra firma a que vai chegar.

Pinhal Novo, 9 de Março de 2016

josé manuel rosendo