Porta-voz da FDS em conferência de imprensa em Ain Issa, Raqqa. Foto: Site da Kurdistan24TV. |
A borboleta bateu as asas em Washington e provocou ainda
mais confusão no Médio Oriente. Donald Trump, dentro da imprevisibilidade que
se lhe conhece, voltou a tomar decisões e, em regra, nada de bom acontece ao
mundo quando Trump se predispõe a assinar seja o que for. Desta vez anunciou
que as tropas norte-americanas vão retirar da Síria, sendo que as “botas” dos Estados
Unidos no terreno estão a lutar lado-a-lado com as Forças Democráticas da Síria
(FDS), uma aliança das Unidades de Protecção do Povo (milícias curdas – YPG –
Yekîneyên Parastina Gel) com tribos sunitas. Combateram e derrotaram o Estado
Islâmico (EI) com a ajuda da coligação internacional liderada pelos Estados
Unidos, cuja acção passou essencialmente por ataques aéreos a posições do EI.
A decisão de Donald Trump foi de tal modo inesperada
e despida de racionalidade que motivou a demissão do Secretário da Defesa, Jim
Mattis. Disse o último daqueles a quem Trump tem chamado de “os meus Generais” que
o Presidente norte-americano precisa de ter um Secretário da Defesa com ideias
mais próximas das dele.
Concretamente em relação aos Curdos o historial de
traições é longo. Desde o Acordo Sykes-Picot com o qual Reino Unido e França definiram
esferas de influência no Médio Oriente, passando pelo que aconteceu durante a
ditadura de Saddam Husseín até à decisão de Trump sobre a Síria. Os Curdos do
Iraque foram a “tropa de choque” que travou a expansão do EI e infligiu as
primeiras derrotas aos extremistas quando as tropas de Bagdad batiam em
retirada; os Curdos da Síria foram os que nunca se renderam e mantiveram Kobani
“ligada à máquina” enquanto a Turquia se limitava a observar do outro lado da
fronteira, até que os ataques aéreos da coligação internacional ajudaram os
curdos a expulsar o EI de Kobani. Foi aí que começou a derrota do EI na Síria.
Mas tudo isto – que nem era necessário para ter
direito a reivindicar a autodeterminação – parece pouco para uma (pomposamente
chamada) Comunidade Internacional que teima em não reconhecer direitos
evidentes e plasmados na própria Carta das Nações Unidas e na Declaração
Universal dos Direitos Humanos. Os Curdos foram úteis e agora são deixados à
sua sorte.
A decisão de Donald Trump de retirar tropas – os Estados
Unidos dizem que são cerca de dois mil militares – da Síria, coloca desde logo
a questão, tal como Trump declarou, se o Estado Islâmico está mesmo derrotado. As
informações mais recentes dão conta de que mesmo depois de Trump anunciar a
retirada da Síria, continuaram os ataques aéreos da coligação internacional a
alvos do EI. Desde que foi lançada (10 de Setembro) a operação para tomar o
último reduto do EI junto à fronteira com o Iraque, os combates provocaram
cerca de um milhar de mortos de combatentes do EI e mais de 500 mortos entre as
forças curdo-árabes das FDS. Números que mostram uma guerra longe do fim.
Recordamo-nos
também da declaração de George W. Bush (“missão cumprida”) em Maio de 2003,
depois de Bagdad ter caído às mãos dos invasores. Sabemos todos que a missão
não estava cumprida e que até hoje o Iraque vive em guerra. Tendo isso na
memória, a decisão de Donald Trump sobre a Síria abre duas frentes: aquela em
que a Turquia sente as mãos livres para, tal como o presidente Recep Erdogan tem
dito e mostrado vontade, atacar e acabar com as milícias curdas; a outra é a do
reforço da posição russa e iraniana (o Irão também se opõe a tudo o que
beneficie politicamente os curdos) na Síria. E há ainda um terceiro problema
nesta equação complexa: a Turquia é um país da NATO, mas há outros países da
NATO que já condenaram a decisão de Trump e prometem continuar a apoiar (pelo
menos a França) os Curdos da Síria.
É preciso sublinhar que criticar os Estados Unidos
por interferência em conflitos/guerras não é incompatível com as críticas no
momento em que decidem retirar-se dessas guerras. Não se trata de ser preso por
ter e não ter cão. A questão é que após uma decisão de interferência e
participação numa guerra a realidade no terreno altera-se e a decisão de sair
tem um preço para quem está envolvido nesses conflitos. Sair sim, se tal
entenderem, mas com o planeamento devido.
Por várias vezes fiz referência à guerra que se
seguiria no pós Estado Islâmico e essa guerra está a aproximar-se rapidamente,
com o norte da Síria a ameaçar tornar-se palco de mais um conflito medonho. O
jornal turco Hurriyet escreve que a decisão de Donald Trump foi tomada após uma
conversa telefónica com o presidente turco Recep Tayyp Erdogan. O líder turco
prometeu eliminar o que resta do EI no norte da Síria e ao mesmo tempo eliminar
também as milícias curdas. Essa foi aliás a táctica seguida pelo Presidento
sírio e respectivos aliados: com o argumento de bombardearem posições do EI
foram varrendo no caminho todas as forças da oposição não extremista.
Rojava, o Curdistão Ocidental, ganhou autonomia em
2011, face ao desmoronar do poder em Damasco. As instituições que alicerçam a
autodeterminação são ainda frágeis, mas o sonho existe e a resiliência do povo
já deu provas suficientes.
Numa primeira reacção os responsáveis políticos
curdos disseram que vão ser obrigados a retirar as forças que combatem o EI nas
linhas da frente e colocá-las junto à fronteira com a Turquia para combater uma
eventual ofensiva turca. Outra “carta” que pode ser jogada é a libertação de
centenas de combatentes do EI que estão em prisões curdas, uma forma de
pressionar o Ocidente a não deixar cair os Curdos. Dizem que não é chantagem, é
apenas a impossibilidade de manter segurança nas prisões quando for necessário
chamar todas as forças para defender Rojava.
A cada passo, e apesar de ser lugar-comum, ganha
sentido o velho provérbio curdo: “os únicos amigos dos curdos são as montanhas”.
Pinhal Novo, 21 de Dezembro de 2018
josé manuel rosendo
Comentando em passo de corrida:
ResponderEliminari) Velho ditado curdo: “Como amigos só temos as montanhas”.
ii) Cumprimento de promessa feita durante a campanha eleitoral, eventualmente já a pensar na recandidatura?!
iii) Li sobre divergências entre o EUCOM e o CENTCOM, com aquele a tentar segurar a Turquia para alavancar a coesão dos membros da OTAN contra a Federação Russa. James Mattis era um homem do CENTCOM.
iv) Posso estar enganado, mas tenho a ideia de que os EUA não estavam na Síria para derrotar o EI, mas para derrubar Bashar al Assad. Repare que o efectivo americano no Rojava rondará os 2.000 militares, essencialmente das forças especiais, e que por exemplo nas operações de Falluja (Iraque) os EUA empregaram dezenas de milhar de marines.
Não obstante, acompanho a sua perspectiva.
Votos de um Feliz Natal e de um 2019 com saúde e inspiração jornalística.
Desculpe o lapso de não ter lido o seu último parágrafo relativo ao ditado curdo, caso contrário não o teria referido em i) do m/comentário. Cumprimentos.
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