Esta é a noite em que nos anunciam o início de mais um
cessar-fogo na Síria. Quem conhece a guerra saúda qualquer cessar-fogo, por
muito breve que seja. Mais uma vez vamos ter de esperar para ver no que dá. E
não seria honesto dizer que existe a esperança de um verdadeiro e prolongado
cessar-fogo. O xadrez político é de enorme complexidade e o silêncio prolongado
das armas não se obtém apenas com alguns sentados à mesa onde é tecido o
acordo.
Um dos motivos que levou ao fracasso de sucessivos acordos e
negociações sobre a guerra na Síria foi a ausência de grande parte dos grupos
armados que fazem a guerra no terreno. Outro motivo foi a falta de acordo entre
os países e grupos sírios que têm estado na mesa das negociações relativamente
a quem deve ser considerado “terrorista”. Nunca se chegou a acordo sobre os
nomes que deviam constar de uma lista de “terroristas”. Estes dois simples
factos ajudam a explicar a evolução da guerra e a cada vez maior complexidade
da situação na Síria. A cada dia que passa há novas alianças em nome da
sobrevivência, a teia de interesses tem uma leitura cada vez mais complexa,
criam-se novas dependências, há mais ódio, mais raiva, mais desejo de vingança.
Desta vez, no Cazaquistão, sem a presença dos Estados Unidos,
mas com a presença da Rússia, Turquia e Irão, foi obtido um novo acordo de
cessar-fogo. O Ministério da Defesa da Federação Russa divulgou entretanto uma
lista de grupos da “oposição moderada” que se juntaram/aderiram ao cessar-fogo.
Eis a lista: Feilak al Sham, Ahrar al Sham, Jaysh al Islam, Thuwar al Sham,
Jaysh al Mujahideen, Jaysh Idlib e Jabhat al Shamiyah. Ao todo, estima o
Governo russo, estes grupos têm mais de 50 mil combatentes. São grupos que até
agora cabiam facilmente no catálogo da Rússia e do governo sírio relativamente
a grupos “fundamentalistas”, “jihadistas”, “fundamentalistas”, “salafistas”, “extremistas”
e por aí fora… Eram estes grupos, ou outros idênticos, que estiveram a combater
em Aleppo. Mas nessa altura eram “terroristas”. Agora deixaram de ser e
passaram a “oposição moderada”. Não há nada de errado em conseguir um
cessar-fogo que incluiu estes grupos. Aliás, é dos livros que a
paz é feita com os inimigos. O que é extraordinário – e não é uma referência a Assad ou a Putin –
é que alguns opinadores apressados tenham agora de meter a viola no saco e
conceder que afinal os que combatiam em Aleppo contra Assad e Putin também se
sentam à mesa para discutir acordos de cessar-fogo e, eventualmente, um acordo
de paz. É bom que isso tenha sido conseguido apesar de poucas horas após o anúncio do cessar-fogo terem surgido vozes divergentes de alguns dos grupos anunciados como alinhados com o cessar-fogo.
À distância, as redes sociais têm potenciado a tendência
para encontrar os bons e os maus desta guerra. Erro crasso. Não vale a pena
tentar argumentar sobre a justiça ou injustiça desta guerra. Ela fez quase seis
anos de caminho e não se pode voltar ao ponto em que teria sido possível
evitá-la. Mas é bom que se diga que as primeiras manifestações contra o regime
de Assad e que deram origem à revolta armada que degenerou em guerra foram manifestações
pacíficas e apenas exigiam justiça para os que tinham castigado de forma
indecente um grupo de jovens que cometeu o “crime” de escrever algumas frases
revolucionárias nas paredes de uma escola. A repressão do regime a essas
manifestações foi brutal. O próprio Assad reconheceu (JN 06.10.2013) que
“acontecem erros pessoais", que "todos cometem erros" e que
"até um presidente os comete”. Para quem agora defende a tolerância do
regime de Assad é bom que revisite esses dias para perceber a tolerância de que
fala.
O regime dos Assad nunca foi tolerante. Aliás, o filho
Bashar seguiu, embora com um novo registo de comunicação, aquilo que o pai Hafez tinha
feito nos quase 30 anos em que foi Presidente da Síria. Que o digam os
habitantes de Hama e a Irmandade Muçulmana (sunita) quando, em 1982, foram bombardeados
pela aviação síria. Ficou o registo de muitos milhares de mortos e uma cidade
parcialmente destruída. Que o digam dirigentes políticos libaneses assassinados
durante a guerra civil libanesa. Aliás, a alegada tolerância religiosa do
regime de Assad só pode ser comparada à mesma tolerância praticada pelas
antigas potências coloniais no Médio Oriente: sempre alegaram defender as
minorias para terem um argumento de repressão contra qualquer tentativa de
emancipação dos povos que dominavam.
Antes da revolta de 2011, a Síria vivia em “estado de
emergência” desde há 48 anos. Bashar al Assad nunca deu um único sinal de que
estivesse disposto a negociar fosse o que fosse e as reformas e eleições
concretizadas já em tempo de revolta vieram atrasadas e foram uma mal-amanhada
fuga para a frente.
Decorridos quase seis anos de guerra na Síria, Bashar al
Assad parece ter encontrado os maiores defensores numa área de fundamentalismo
laicista que não entende o peso da religião naquela região do Mundo. Gostemos
ou não, queiramos ou não, a religião tem um peso muito diferente daquele que
tem, por exemplo, em Portugal. Não aceitarmos isto nem as respectivas
consequências de um olhar de cunho religioso em relação aos problemas
políticos, vai levar-nos a leituras erradas. Não estou a dizer que a religião
deva ter o peso que tem, mas tem! E não é por gostarmos mais ou menos que as
coisas passam a ser diferentes.
Os grupos que combatem o regime de Bashar al
Assad têm génese religiosa? Sim, muitos têm. Mas a pergunta correcta será: qual
é (na Síria) o grupo armado ou milícia que não tem uma génese religiosa? Talvez
os curdos sejam os únicos que não têm na religião a sua principal premissa
política. Aliás, os curdos ficaram fora deste cessar-fogo, tal como o Estado
Islâmico e a ex-Front al Nusra. Espero que os defensores do democrata Assad não
venham agora dizer que Curdos, Estado Islâmico e ex-Front al Nusra são uma e a mesma
coisa.
Pinhal Novo, 30 de Dezembro de 2016
josé manuel rosendo
Os bons (há?), os maus (muitos) e os nem por isso. Que sustentam e sustentaram ditadores, conforme a conveniência geoestratégica. E assim continuam, apoiando regimes que fazem da violação da Carta dos Direitos Humanos a sua prática quotidiana.
ResponderEliminar"Boris Johnson was not representing the government’s views on Saudi Arabia when he accused the state of abusing Islam and acting as a puppeteer in proxy wars, Downing Street has said."
E depois dá nisto, neste lastro que vem da Guerra do Iraque e as centenas de milhares de mortos, continuada nestes dias intensos na guerra que "não existe" em Mossul (por se tratar da coligação "amiga"?).
Como bem escreve, bons e maus numa guerra como esta?
Venha o diabo e escolha!
Continuação de boas crónicas,
A.A.
Se me permite mais esta nota de final de ano.
ResponderEliminarDe acordo com estimativa, só em 2016 os U.S. largaram 12 mil bombas na Síria.
http://blogs.cfr.org/zenko/2017/01/05/bombs-dropped-in-2016/
A que se somarão as muitas mais da Rússia.
E ante este massacre como estranhar que a população procure refúgio noutros continentes?
Alguém se imagina ante este cenário?
Amílcar A.