Eles são os perfeccionistas. Não querem Homens, querem
Deuses. E o mais engraçado é que a maior parte deles nem sequer acredita nessa
dimensão da vida.
A morte de Mário Soares exacerbou o debate sobre as
qualidades humanas e políticas de um homem que, para o bem e para o mal, deixou
forte marca na nossa vida. Mas a questão é recorrente e, embora sem a dimensão
dos últimos dias, já se aplicou a outras pessoas na nossa política.
Muitos destes inquisidores dos nossos dias parece que receberam
uma grelha de avaliação das qualidades humanas onde depois colocam as acções e
as ideias daqueles que são alvo da “investigação”. Depois, colocam um rótulo.
Ninguém escapa nesta grelha de avaliação. Há sempre um pormenor, algo que foi
dito ou feito num determinado momento, que condena o alvo escolhido. Pode o
alvo ter sido um humanista, um homem ou mulher que tenha dedicado a vida a uma
causa sem outro interesse que não o bem comum; pode ter sido alguém que tenha
sacrificado o próprio bem- estar e o da família; pode ter sido alguém que teve
a coragem de fazer o que os actuais ASAE’s do pensamento nunca ousariam (porque
às vezes é preciso uma certa dose de loucura que gente tão perfeita nunca terá…);
pode ter sido uma pessoa que morreu numa prisão fascista porque ousou enfrentar
a ditadura; pode ter sido alguém que prefere dizer Não quando existe a possibilidade
de ser conivente com uma injustiça. Pode ser uma pessoa quase perfeita que, por
uma vez, se enganou ou decidiu mal, mas é o suficiente para ser condenado e
assassinado pelos que passam a vida a filtrar a vida dos outros à procura do
tal defeito que há-de ser motivo de condenação pública. É quase uma nova
Inquisição.
Estes iluminados que fazem tudo de forma perfeita, de vez em
quando citam algum pensador menos conhecido, dando ares de quem já leu muito e
até para além do que é obrigatório, entenda-se os clássicos. Também há muitos
que têm – reconheço – uma boa dose de criatividade e arte quando toca a juntar
palavras, construindo imagens literárias de forte impacto e que os ajuda a ter
alguns seguidores. Mas é apenas isso: a arte de jogar bem com as palavras. É
assim uma espécie de fogo-de-artifício: depois do estoiro dos foguetes e das
cores que momentaneamente iluminam o céu, não fica nada. No caso dos referidos
iluminados, nem as canas se aproveitam.
Não estou a falar de Mário Soares, mas também se aplica ao muito
de insensato que foi escrito sobre ele nos últimos dias. E aplica-se a muitos
outros que se limitam a ser homens com defeitos e que são depois alvo desta
nova Inquisição. Ainda bem que temos liberdade de expressão e obviamente que ninguém
pode esperar não ser alvo do escrutínio público porque afinal a democracia é
isso mesmo. O problema é que há uma brigada perfeccionista que tenta
influenciar o espaço público maximizando pequenos defeitos e erros de algumas
pessoas em detrimento de acções e ideias muito mais importantes e decisivas
para o nosso futuro comum. Fazem-no recorrendo ao insulto e não raras vezes
recorrendo à mentira e ao boato repetido quase transformado em verdade. A isso
chama-se pequenez.
Muitos dos que adoptam esta forma de estar não têm um pingo
de coragem para em momentos difíceis dar o passo em frente ou sair do conforto
da crítica fácil. Muitos deles vivem dentro de um computador, agarrados (sem
aspas) às redes sociais, qual realidade paralela, à falta de melhor vida. Vão
morrer frustrados porque nunca irão fazer nada na vida nem encontrar ninguém
assim tão perfeito quanto eles idealizam e até pensam que conseguem ser.
josé manuel rosendo
Pinhal Novo, 11 de Janeiro de 2017
Nem os santos estão isentos de análise crítica. Espero que não tenhas confundido aqueles que analisam criticamente a carreira política de Soares, algo absolutamente normal quando o político desaparece, com os que criticam as qualidades pessoais do homem sem o conhecerem de lado nenhum. Eu coloco-me entre os que, ignorando por completo se Soares era bom pai de família ou avô, olham negativamente para a sua herança política do pós-25 de abril, para o seu papel na sociedade portuguesa, para as suas amizades e cumplicidades com gente como os espíritos santos e carluccis e para as consequências que tais amizades tiveram. Olho para o seu papel na criação de legislação laboral que prejudicou operários como tu foste na juventude, ainda que, claro, continues a ser operário, mas já não daqueles que vai para a linha de montagem todas as manhãs; olho para a reprivatização da banca, que nos levou sabemos hoje onde. A morte é, por excelência, o momento para debater as heranças políticas de quem teve a coragem porque, claro, Soares teve coragem, de ser político, de decidir, de optar. Não é coisa pouca. Seja com quem for. Coisa diferente de aceitar acriticamente toda a herança política de quem teve esta coragem. Claro que houve uns mais corajosos que outros, mas essa nem é a discussão relevante neste contexto. Faz isto de mim o quê? Espero mesmo que não cometas a injustiça de confundir tudo e todos.
ResponderEliminarPaulo, leste bem? Se calhar não leste esta parte: "Ainda bem que temos liberdade de expressão e obviamente que ninguém pode esperar não ser alvo do escrutínio público porque afinal a democracia é isso mesmo. O problema é que há uma brigada perfeccionista que tenta influenciar o espaço público maximizando pequenos defeitos e erros de algumas pessoas em detrimento de acções e ideias muito mais importantes e decisivas para o nosso futuro comum. Fazem-no recorrendo ao insulto e não raras vezes recorrendo à mentira e ao boato repetido quase transformado em verdade. A isso chama-se pequenez". Acho que responde às questões que suscitas.
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