quarta-feira, 11 de janeiro de 2017

Gente infeliz e cheia de ódio


Eles são os perfeccionistas. Não querem Homens, querem Deuses. E o mais engraçado é que a maior parte deles nem sequer acredita nessa dimensão da vida.

A morte de Mário Soares exacerbou o debate sobre as qualidades humanas e políticas de um homem que, para o bem e para o mal, deixou forte marca na nossa vida. Mas a questão é recorrente e, embora sem a dimensão dos últimos dias, já se aplicou a outras pessoas na nossa política.

Muitos destes inquisidores dos nossos dias parece que receberam uma grelha de avaliação das qualidades humanas onde depois colocam as acções e as ideias daqueles que são alvo da “investigação”. Depois, colocam um rótulo. Ninguém escapa nesta grelha de avaliação. Há sempre um pormenor, algo que foi dito ou feito num determinado momento, que condena o alvo escolhido. Pode o alvo ter sido um humanista, um homem ou mulher que tenha dedicado a vida a uma causa sem outro interesse que não o bem comum; pode ter sido alguém que tenha sacrificado o próprio bem- estar e o da família; pode ter sido alguém que teve a coragem de fazer o que os actuais ASAE’s do pensamento nunca ousariam (porque às vezes é preciso uma certa dose de loucura que gente tão perfeita nunca terá…); pode ter sido uma pessoa que morreu numa prisão fascista porque ousou enfrentar a ditadura; pode ter sido alguém que prefere dizer Não quando existe a possibilidade de ser conivente com uma injustiça. Pode ser uma pessoa quase perfeita que, por uma vez, se enganou ou decidiu mal, mas é o suficiente para ser condenado e assassinado pelos que passam a vida a filtrar a vida dos outros à procura do tal defeito que há-de ser motivo de condenação pública. É quase uma nova Inquisição.

Estes iluminados que fazem tudo de forma perfeita, de vez em quando citam algum pensador menos conhecido, dando ares de quem já leu muito e até para além do que é obrigatório, entenda-se os clássicos. Também há muitos que têm – reconheço – uma boa dose de criatividade e arte quando toca a juntar palavras, construindo imagens literárias de forte impacto e que os ajuda a ter alguns seguidores. Mas é apenas isso: a arte de jogar bem com as palavras. É assim uma espécie de fogo-de-artifício: depois do estoiro dos foguetes e das cores que momentaneamente iluminam o céu, não fica nada. No caso dos referidos iluminados, nem as canas se aproveitam.

Não estou a falar de Mário Soares, mas também se aplica ao muito de insensato que foi escrito sobre ele nos últimos dias. E aplica-se a muitos outros que se limitam a ser homens com defeitos e que são depois alvo desta nova Inquisição. Ainda bem que temos liberdade de expressão e obviamente que ninguém pode esperar não ser alvo do escrutínio público porque afinal a democracia é isso mesmo. O problema é que há uma brigada perfeccionista que tenta influenciar o espaço público maximizando pequenos defeitos e erros de algumas pessoas em detrimento de acções e ideias muito mais importantes e decisivas para o nosso futuro comum. Fazem-no recorrendo ao insulto e não raras vezes recorrendo à mentira e ao boato repetido quase transformado em verdade. A isso chama-se pequenez.

Muitos dos que adoptam esta forma de estar não têm um pingo de coragem para em momentos difíceis dar o passo em frente ou sair do conforto da crítica fácil. Muitos deles vivem dentro de um computador, agarrados (sem aspas) às redes sociais, qual realidade paralela, à falta de melhor vida. Vão morrer frustrados porque nunca irão fazer nada na vida nem encontrar ninguém assim tão perfeito quanto eles idealizam e até pensam que conseguem ser.

josé manuel rosendo

Pinhal Novo, 11 de Janeiro de 2017

2 comentários:

  1. Nem os santos estão isentos de análise crítica. Espero que não tenhas confundido aqueles que analisam criticamente a carreira política de Soares, algo absolutamente normal quando o político desaparece, com os que criticam as qualidades pessoais do homem sem o conhecerem de lado nenhum. Eu coloco-me entre os que, ignorando por completo se Soares era bom pai de família ou avô, olham negativamente para a sua herança política do pós-25 de abril, para o seu papel na sociedade portuguesa, para as suas amizades e cumplicidades com gente como os espíritos santos e carluccis e para as consequências que tais amizades tiveram. Olho para o seu papel na criação de legislação laboral que prejudicou operários como tu foste na juventude, ainda que, claro, continues a ser operário, mas já não daqueles que vai para a linha de montagem todas as manhãs; olho para a reprivatização da banca, que nos levou sabemos hoje onde. A morte é, por excelência, o momento para debater as heranças políticas de quem teve a coragem porque, claro, Soares teve coragem, de ser político, de decidir, de optar. Não é coisa pouca. Seja com quem for. Coisa diferente de aceitar acriticamente toda a herança política de quem teve esta coragem. Claro que houve uns mais corajosos que outros, mas essa nem é a discussão relevante neste contexto. Faz isto de mim o quê? Espero mesmo que não cometas a injustiça de confundir tudo e todos.

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    1. Paulo, leste bem? Se calhar não leste esta parte: "Ainda bem que temos liberdade de expressão e obviamente que ninguém pode esperar não ser alvo do escrutínio público porque afinal a democracia é isso mesmo. O problema é que há uma brigada perfeccionista que tenta influenciar o espaço público maximizando pequenos defeitos e erros de algumas pessoas em detrimento de acções e ideias muito mais importantes e decisivas para o nosso futuro comum. Fazem-no recorrendo ao insulto e não raras vezes recorrendo à mentira e ao boato repetido quase transformado em verdade. A isso chama-se pequenez". Acho que responde às questões que suscitas.

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