quinta-feira, 27 de setembro de 2018

O Presidente da República discursou na ONU? Deixa lá, não tem importância...


                           Créditos da foto: ONU

Das primeiras páginas dos jornais que já vi para esta quinta-feira, nem um faz chamada de primeira página ao discurso do Presidente da República, ontem à noite (quarta-feira), perante a Assembleia Geral das Nações Unidas. Marcelo Rebelo de Sousa discursou às 23h00 e o discurso, que me pareceu muito bom, deve ter sido uma das pouquíssimas vezes em que Portugal deu “um murro na mesa”, mesmo que tenha sido suave, em matéria de política internacional. Mas não é isso que está em causa.

Antes de assinalar o que considero importante, acrescento que a minha rádio também não transmitiu em directo – apenas passámos excertos nos noticiários – os cerca de 20 minutos do discurso de Marcelo Rebelo de Sousa. Não sei o que fizeram as outras rádios e quanto a televisões apenas sei que a RTP3 transmitiu o discurso em directo. Perdoem-me não ter paciência para ir à boxe verificar o que todos andaram a fazer.

Junto um outro elemento: lembrar-se-ão certamente do alarido e do foguetório que todos fizemos quando António Guterres foi eleito Secretário-geral das Nações Unidas. Horas de televisão e de rádio, mais páginas e páginas de jornais.

Dito isto e tendo em conta a cobertura jornalística que se seguiu sobre a actividade de Guterres, juntando a desvalorização que agora acaba de ser feita ao discurso do presidente da República, é imperioso tentar encontrar resposta para algumas questões.

Não poderiam os jornais ter fechado um pouco mais tarde para poder trazer uma informação já de hora tardia que agradaria aos leitores que adormecem mais cedo e que esta quinta-feira vão comprar o jornal? Se fosse um jogo de futebol importante (bastaria que fosse de um dos chamados grandes) não teriam esperado para saber o resultado?

O alarido com a eleição de António Guterres para Secretário-geral da ONU aconteceu porque a ONU é de facto uma organização importante, e o que lá se passa é importante, ou esse alarido foi apenas a expressão do mesmo olhar provinciano que transforma em notícia qualquer referência a Portugal num jornal ou revista estrangeiros?

A Assembleia Geral da ONU é o momento em que cada país diz ao Mundo o que por aqui anda a fazer e o que pensa dos problemas comuns. É a casa comum dos países em que todos se olham nos olhos e dizem ao que vão e o que querem. É a grande casa da Política Internacional. Mas que importa isso num país em que há coisas muito mais importantes a preencherem as páginas dos jornais e o tempo das rádios e televisões!?

Seria assim tão caro atrasar um pouco o fecho dos jornais ou transmitir em directo o discurso do Presidente da República? É que neste caso nem sequer podem utilizar a desculpa do “não há dinheiro” porque bastava estar a seguir os discursos através da página das Nações Unidas. E quanto aos jornais não me venham dizer que está tudo nas respectivas páginas de Internet porque se a resposta for essa, então mais vale assumirem a cobardia de não terem a coragem de acabar de vez com as edições em papel.

É nestes momentos que sinto vergonha. Sei que é um sentimento de vergonha alheia, mas não consigo deixar de sentir vergonha do estado a que o jornalismo chegou.

Pinhal Novo, 27 de Setembro de 2018
josé manuel rosendo

quinta-feira, 6 de setembro de 2018

O estado a que a CP chegou


Ponham um mapa em cima da mesa e decidam qual é a rede de ferrovia que querem para o país. E depois digam-nos. E, já agora, porque é indispensável, digam-nos que CP querem.

Falar da CP, confesso, integra uma grande componente afectiva. Talvez por isso, a situação vergonhosa do transporte ferroviário em Portugal potencia aquela sensação de “vergonha alheia” que por vezes nos invade a alma. Quando se fala da CP é isso que sinto: uma grande vergonha (alheia) pela situação a que a empresa chegou.
Passo a explicar: sou filho, neto, sobrinho, primo e tenho muitos amigos ferroviários. Nasci numa terra – Pinhal Novo – que, também ela, cresceu a partir de uma “Estação de comboios”. Ainda hoje – embora pela negativa – a linha ferroviária marca a vida de Pinhal Novo, cortando-a literalmente a meio. A electrificação da via e a anulação de passagens de nível deixou-nos duas pontes – de difícil utilização pedonal - e um túnel que convém evitar, principalmente durante a noite. Cerca de 30 mil habitantes divididos pelas linhas do comboio.

Até eu, embora fugazmente, trabalhei na CP, e durante toda a minha vida, enquanto os mais velhos da família foram vivos, as conversas sobre comboios eram o tema favorito. O comboio marcava o ritmo da vida familiar. Ia com a minha mãe à Estação levar a lancheira ao meu pai – maquinista – à passagem do comboio. Havia maquinistas que tinham uma forma específica de serem reconhecidos através do apito da máquina. Era também no bar da Estação de Pinhal Novo que comprava, sem falha, todas as semanas, os livrinhos de banda desenhada da colecção “O Falcão” com as aventuras de Texas Kid, Major Alvega e tantos outros. Durante o verão, cheguei a vender bilhas de barro, com água fresca, através das janelas dos comboios “rápidos” que iam para o Algarve e para o Alentejo…

Pai maquinista, tios maquinistas, um tio operário das oficinas da CP no Barreiro, um tio “chefe de lanço”, avôs “trabalhadores da via”, a minha avó Maria Augusta guarda de passagem de nível. Desde os 10 anos que utilizei o comboio para ir para a escola. Era o tempo daquele a que chamávamos o “comboio do texas”, tal a velhice das carruagens ao serviço, que tinham portas de abrir para fora e não poucas vezes provocaram acidentes. A CP está-me no sangue e é também por isso que me dói – ainda mais – o que está a acontecer à empresa.

Não é de agora que a CP está mal. É de há muito tempo! E a CP ficou ainda pior desde a ideia peregrina de espartilhar a empresa de transporte ferroviário em várias empresas: REFER (Rede Ferroviária Nacional, agora integrada na IP - Infraestruturas de Portugal), EMEF (Empresa de Manutenção de Equipamento Ferroviário), CP Carga (agora Medway – operadora privada de transporte de mercadorias…); até a FERTAGUS (operadora privada de transporte de passageiros) – uma PPP da ferrovia. Para quê, perguntamos agora, quando afinal a ferrovia chegou a este ponto. Apenas, claro, para criar umas administrações ocupadas por amigalhaços e uns quantos negócios certamente úteis a alguns “empreendedores”. Espanto dos espantos: o actual Presidente da CP disse recentemente na Comissão Parlamentar de Obras Públicas que “não existe CP sem EMEF!”. Faltou-lhe dizer que também não existe CP sem REFER e sem o serviço de transporte de mercadorias. Que eu tenha dado por isso – quiçá lapso meu – nenhum deputado da dita Comissão perguntou ao presidente da CP se defende uma empresa que recupere todas as vertentes de que foi espoliada. A CP deve ser uma empresa ao serviço do país, em todas as vertentes do transporte ferroviário. A CP deve ser um todo num país que deve ser olhado e gerido como um todo. 

Um dos problemas da CP é semelhante ao de outras empresas públicas: os lugares de administração são distribuídos por conveniência política! Em Portugal não existe uma escola de Serviço Público e as empresas não conseguem (não as deixam) gerar os seus próprios líderes: gente que conheça, de facto, as empresas, para além das folhas de excel e dos resultados financeiros. Gerir a CP não é o mesmo que gerir a TAP, um Hospital ou a RTP. Não é, mas parece, tal a dança de cadeiras que todos conhecemos.

Há ainda o problema das indemnizações compensatórias. O Estado exige das empresas, devia pagar, mas não paga.

A génese do problema da CP é semelhante aos problemas do Serviço Nacional de Saúde, aos problemas da Escola Pública, e a tantos outros: não há uma ideia para o país que queremos, com Serviços Públicos que sirvam de facto o desenvolvimento do país, em vez de servirem interesses da elite que em cada momento tem lugares no Governo. Os sucessivos governos não podem escamotear responsabilidades no estado a que a CP chegou e os partidos políticos que têm tido responsabilidades governativas continuam entretidos em trocas de acusações que nada resolvem. Deixem de esgrimir argumentos sobre propostas que não passam de paliativos e mostrem-nos um plano verdadeiramente regenerador da CP e da ferrovia. O desafio aplica-se também aos partidos políticos que têm estado fora do chamado “arco da governação”: não basta criticar, digam-nos qual é a CP que querem e, já agora, como é que a podemos pagar.

Pinhal Novo, 6 de Setembro de 2018

josé manuel rosendo

segunda-feira, 20 de agosto de 2018

Idlib, a última batalha da guerra na Síria?



O Estado Islâmico esperava uma última batalha em Dabiq, cidade do noroeste da Síria, onde supostamente teria lugar a batalha do fim dos tempos entre muçulmanos e infiéis. O Profeta Maomé terá dito que o Apocalipse não chegaria antes de os Muçulmanos vencerem os romanos (há historiadores que consideram ser uma referência aos cristãos) em Dabiq ou Al Amaq (na província turca de Hatay), ambas na região de fronteira turco-síria. Depois da derrota militar do Estado Islâmico, esquecida a batalha do fim dos tempos, certo é que não muito longe destas duas cidades de grande valor simbólico, uma outra cidade (e província), Idlib, vê criadas as condições para aquela que poderá ser a última batalha da guerra na Síria. Uma última batalha que tem todos os ingredientes para ser também um banho de sangue, quiçá muito maior do que aqueles a que os mais de sete anos de guerra já produziram.



Em Idlib concentra-se a maior bolsa de forças anti-governamentais, que inclui grupos armados radicais de génese religiosa e outros que ao longo dos anos têm combatido as forças de Bashar Al Assad. Em Idlib refugiaram-se todos aqueles que foram sendo derrotados nos locais que as forças do regime têm vindo a reconquistar. Perante a derrota militar (por exemplo em Ghouta Oriental, em Aleppo ou em Daraa...), as negociações para o cessar-fogo e a rendição dos rebeldes incluíram a saída desses locais, em grandes comboios de autocarros, de rebeldes e respectivas famílias, em direcção a Idlib. O regime aceitou e cedo se percebeu qual era a intenção: ir agrupando os rebeldes, ir apertando o cerco e deixando cada vez menos alternativas. Se em várias fases da guerra uma das dificuldades do regime foi combater e dispersar forças em várias e distantes frentes de batalha, agora a situação é exactamente ao contrário. Para além da presença de grupos rebeldes que ainda existe no sul da Síria e na região de fronteira com o Iraque, é em Idlib que a resistência ao regime tem peso e expressão.

A população da região (cidade e arredores) cresceu e estima-se que seja superior a três milhões de pessoas, devido à chegada dos deslocados provenientes de outros locais. Há também relatos de uma presença significativa de combatentes do Estado Islâmico e de Frente Al Nusra (ou Jabaht Al Nusra), da Al Qaeda.

O regime sírio não esconde a movimentação de forças que constroem uma tenaz em redor de Idlib, aliás dá notícia de movimentações em tudo semelhantes a outras que levaram à reconquista de outras parcelas de território. Bashar Al Assad disse que queria reconquistar todo o território e não vai desistir desse propósito, principalmente quando a situação no terreno lhe é favorável. Disse no final de Julho que “agora, o objectivo é Idlib”. O regime fala em reconciliação e apela aos civis para cooperarem com as forças governamentais ao mesmo tempo que já bombardeia localidades nos arredores de Idlib; os rebeldes não dão nenhum sinal de rendição. Os “barris-bomba” já são lançados na região rural e mais a sul de Idlib. Já há civis em fuga, mas dentro da região cercada não há para onde fugir a não ser para a grande cidade.

É impossível saber como o Governo sírio e os aliados Rússia e Irão, vão querer resolver a questão de Idlib, sendo que já tivemos provas suficientes de que os bombardeamentos indiscriminados a zonas rebeldes nunca foram um problema durante os mais de sete anos de guerra. Por outro lado, se Bashar Al Assad pretende recuperar alguma credibilidade internacional, não vai querer ficar com um último massacre no currículo já de si tão manchado. O chefe da diplomacia turca alertou para a possibilidade de uma catástrofe em caso de assalto das forças governamentais. A Rússia diz que é preciso separar os “grupos rebeldes” dos “terroristas”, sendo que, já se sabe, que é terrorista para uns não é terrorista para outros.

Do lado dos rebeldes, perante a ausência de alternativas, alguns grupos poderão aceitar um processo de reconciliação, embora seja pouco confiável a garantia de uma reintegração em zonas controladas pelo Governo; outros grupos, mais radicais, que recusam qualquer reconciliação, podem aspirar a uma eventual retirada à imagem do que aconteceu noutras zonas, o problema é saber para onde. A Turquia não deve estar pelos ajustes e não se vislumbra que países podem eventualmente aceitar receber os combatentes mais radicais. Resta a zona curda, norte da Síria, mas a relação dos radicais com as milícias curdas nunca foi boa, antes pelo contrário, e até a região curda está na lista dos territórios que Bashar Al Assad quer reconquistar.

Em Idlib, três milhões de pessoas estão à espera. As organizações de ajuda humanitária dizem que já não têm capacidade de auxiliar toda a gente; os campos de deslocados estão a abarrotar. Se nada for feito, a chamada comunidade internacional arrisca-se a assistir a algo em relação ao qual vamos ver depois as “lágrimas de crocodilo” e os discursos carregados de lamentos e emoção. Não chega!

Pinhal Novo, 20 de Agosto de 2018
josé manuel rosendo