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terça-feira, 25 de fevereiro de 2020

Não podemos esquecer a Síria

Deslocados sírios com os haveres que conseguem transportar, em Hazano, próximo de Idlib. Fotografia publicada na Al Jazeera a 12 de Fevereiro, da autoria de Khalil Ashawi/Reuters

Sim, apenas falar e escrever não chega, mas é o que podemos fazer. Não deixar esquecer o que está a acontecer na Síria. Nunca é demais falarmos do que por lá se está a passar, que é tanto, e do pouco que vamos conseguindo saber. É tempo demais em guerra e sofrimento. Por estes dias faz frio na Síria. Faz ainda mais frio para quem tem de fugir com os filhos pela mão e os haveres como puder ser. Aliás, falamos tão pouco de uma tragédia há muito anunciada que até parece que é assim uma coisa que não nos toca e algo impossível de evitar. Podemos não ter o poder de mudar o que está a acontecer na Síria, mas temos pelo menos o dever e o poder de não deixar que a tragédia dê passos largos sem lhe tentarmos pregar uma valente rasteira.

Já são poucas as palavras/adjectivos ainda por usar para descrever a tragédia. As imagens que nos vão chegando, que mostram pessoas em fuga sem saberem para onde, são as imagens que traduzem a nossa falha colectiva. Nem as Nações Unidas lhes conseguem valer. Todos deixam alertas e fazem declarações fortes. António Guterres (secretário-geral da ONU), o enviado especial para a Síria, o Alto Representante da União Europeia para os Negócios Estrangeiros... até o Papa... todos dizem que a guerra tem de parar. Mas não para.

A chamada “real politik” prevalece sempre. Faz tábua rasa dos Direitos Humanos e da Lei Internacional. E ninguém é punido.

O “imperador turco” envia tropas para a Síria e acha que tem esse direito. Diz que é para criar uma zona de segurança que afaste da fronteira turca os “terroristas” curdos e ameaça uma forte ofensiva se os “donos da casa” atacarem os militares turcos; o “czar russo” tem o porto de águas quentes e uma base aérea em território sírio, volta a marcar presença no Médio Oriente e apoia o aliado de Damasco, faça ele o que fizer; e o Presidente sírio, sem querer saber de estar a matar o próprio povo, faz avançar os blindados e a artilharia, porque acha que a Síria tem de ser dele, custe o que custar. Como se nada disso bastasse, Israel bombardeia alvos na Síria, parecendo que está numa carreira de tiro, treinado quando lhe apetece. Ninguém diz nada. Todos dizem lutar contra o terrorismo. Obviamente, não podem estar todos a dizer a verdade, ou será que são todos terroristas? É assim que estamos.

Pelo meio morrem pessoas, muitas pessoas. Desde o início de Dezembro do ano passado, cerca de 900.000 pessoas fugiram dos locais onde viviam. A maior parte dirige-se à fronteira com a Turquia. A fronteira está fechada e a ONU já pediu que seja aberta, mas não foi. Uma ONG síria denunciou que os guarda de fronteira turcos já mataram e feriram pessoas que tentaram passar o muro de betão.

Até agora as referências neste texto são todas relativas a Idlib (Noroeste da Síria), mas na região nordeste (em direcção ao Iraque), zona curda, as Nações Unidas estimam que 1,9 milhões de pessoas precisam de ajuda humanitária. Toda esta zona está em profunda instabilidade: há forças do regime sírio, turcos e russos fazem patrulhas conjuntas, os curdos dominam algumas áreas. Um ponto fronteiriço de passagem para o Iraque foi encerrado e António Guterres recomenda agora que seja aberto um ponto de passagem na fronteira com a Turquia de modo a fazer chegar ajuda humanitária à população deslocada, mas até agora não há uma decisão nesse sentido. É também nesta região que estão os campos que albergam combatentes do Estado Islâmico e famílias.

A diferença entre tomar decisões a tempo ou esperar o momento que cada uma das partes envolvidas considera o melhor é que, entretanto, morrem pessoas. Para a “real politik” isso pouco ou nada conta.

O Presidente turco, Erdogan, chegou a anunciar uma Cimeira para 5 de Março. Rússia, Turquia, Alemanha e França, iriam discutir a situação em Idlib. O chede da diplomacia russa, Lavrov, disse depois que um cessar-fogo em Idlib seria uma capitualação face aos "terroristas". Mesmo que venha a haver cimeira, faltam quase duas semanas e até lá as pessoas vão continuar a morrer. Já todos percebemos que nada vai mudar até que Idlib seja tomada pelas forças do regime sírio, nem que para isso tenha de ser arrasada.

Pinhal Novo, 25 de Fevereiro de 2020
josé manuel rosendo

terça-feira, 11 de fevereiro de 2020

Síria, Idlib: tragédia anunciada

Baghouz, Síria, Abril de 2019. Nunca faltam armas e munições. Foto: jmr
As informações mais recentes dão conta que a Turquia abateu um helicóptero do regime sírio. Terão morrido 12 soldados sírios. Todos os indicadores são preocupantes. António Guterres classificou a situação de guerra na Líbia como um escândalo; devia ter dito o mesmo da guerra na Síria, em particular sobre o que se passa na região de Idlib.

A cidade e a região de Idlib, são o último reduto das forças que combatem o Governo sírio. Para Idlib foram enviados muitos combatentes, familiares e outros civis, que recusaram ficar nas regiões que as forças de Bashar Al Assad foram reconquistando durante os últimos meses/anos. Cerca de três milhões de pessoas vivem (viviam) nesta região que faz fronteira com a Turquia; o Observatório Sírio dos Direitos Humanos (OSDH) estima que mais de 50.000 combatentes estejam também na região e entre eles estão vários grupos de inspiração religiosa, com particular destaque para a Hayat Tahrir al Sham, o braço sírio da Al Qaeda, e o transfigurado Free Syrian Army, agora um braço de guerrilha da Turquia.

Nada do que está a acontecer na Síria é verdadeiramente surpreendente. Lembro-me, em 2012, na região de Salma, na montanha de Jabal al Akrad, um comandante local do então recém-formado Free Syrian Army - FSA (Exército de Livre da Síria), perante a ausência de qualquer tipo de apoio externo, disse-me que de bom grado aceitaria armas se a Al Qaeda as oferecesse. Ficou traçado o cenário. Quem entra numa guerra assim, acaba por ter de esquecer a motivação inicial se tiver de lutar para salvar a pele. Foi o que aconteceu aos que acreditaram que seria possível afastar o ditador Bashar Al Assad.

Pelo meio ficaram as hesitações do Ocidente: apenas promessas e palavras que deixaram o FSA mal equipado e abandonado à sua sorte. Em 2013, Barack Obama ainda ameaçou (com o argumento de que estavam a ser utilizadas armas químicas), mas nunca concretizou as ameaças. Depois, o Estado Islâmico assustou o mundo e só nesse momento o Ocidente acordou: bombardeamentos aéreos da coligação internacional com os curdos a fazerem de tropa de choque no terreno. A Rússia, com a certeza de que os Estados Unidos não iriam intervir, percebeu que tinha caminho livre e é hoje o principal aliado da Síria, aproveitando ainda para irritar a NATO enquanto namora a Turquia. Deixando à coligação internacional e aos curdos o combate ao Estado Islâmico, o regime sírio reorganizou-se o melhor que pode e aproveitou para, com o argumento de combater terroristas, bombardear e ganhar terreno às milícias que lhe faziam oposição.

Não consigo recordar ao certo se foi após a tomada de Raqqa ou de Palmira, mas Bashar Al Assad anunciou que apenas iria parar quando retomasse o poder de todo o território sírio; a Rússia deu a entender que talvez não fosse possível. Ainda não foi, mas parece inevitável que tal venha a acontecer. Assad não vai permitir que parte do território da Síria seja controlado por outras armas que não as suas, seja qual for o preço a pagar,  esteja a Turquia de acordo ou não. A não ser que o apoio russo lhe falte, algo pouco provável atendendo à pretensão russa de expandir influência no Médio Oriente, Assad não vai desistir. Mesmo sabendo que os Estados Unidos apoiam a “resposta” turca, o Governo sírio vai querer concretizar a reconquista.

Em Idlib e arredores, perante o inevitável ataque e avanço das forças de Assad, a Turquia ameaça retaliar (e tem retaliado) mas terá de ceder. Ou então haverá uma guerra aberta entre turcos e sírios, sabendo nós que a Rússia há muito escolheu de que lado está. Fazer previsões num xadrez geopolítico tão complexo é sempre um enorme risco, mas à Turquia restará levar para a Líbia os combatentes que, sem outra saída, estão transformados em mercenários às ordens de Ancara. São muitos os combatentes estrangeiros na região, a quem apenas se colocam duas possibilidades: renderem-se a Damasco e serem julgados como mercenários ou manterem-se fiéis à Turquia, lutando na Síria enquanto tiverem apoio, ou “fazendo o serviço” num outro país como a Líbia, para onde, aliás, muitos já foram.

Mais duas questões, sendo que uma delas não é nova e parece não preocupar as consciências: que direito tem a Turquia de estar na Síria a querer impor uma realidade num território que não é o seu? A outra, o que vai acontecer aos civis, desprotegidos, rodeados de combates e ataques aéreos, e sem pontos de fuga? As Nações Unidas, para além das tentativas de diálogo e de calar de armas que nunca são respeitados, pouco poderão fazer. Desde o início da actual ofensiva, em meados de Dezembro, o OSDH dá conta da morte de mais de 350 civis e as Nações Unidas dizem que quase 700.000 pessoas fugiram da região – 100.00 só na última semana. A maioria dos deslocados aglomeram-se junto à fronteira com a Turquia. Idlib, tem tudo para correr mal e o mundo arrisca-se a assistir a mais uma catástrofe.

Pinhal Novo, 11 de Fevereiro de 2020
josé manuel rosendo

segunda-feira, 20 de agosto de 2018

Idlib, a última batalha da guerra na Síria?



O Estado Islâmico esperava uma última batalha em Dabiq, cidade do noroeste da Síria, onde supostamente teria lugar a batalha do fim dos tempos entre muçulmanos e infiéis. O Profeta Maomé terá dito que o Apocalipse não chegaria antes de os Muçulmanos vencerem os romanos (há historiadores que consideram ser uma referência aos cristãos) em Dabiq ou Al Amaq (na província turca de Hatay), ambas na região de fronteira turco-síria. Depois da derrota militar do Estado Islâmico, esquecida a batalha do fim dos tempos, certo é que não muito longe destas duas cidades de grande valor simbólico, uma outra cidade (e província), Idlib, vê criadas as condições para aquela que poderá ser a última batalha da guerra na Síria. Uma última batalha que tem todos os ingredientes para ser também um banho de sangue, quiçá muito maior do que aqueles a que os mais de sete anos de guerra já produziram.



Em Idlib concentra-se a maior bolsa de forças anti-governamentais, que inclui grupos armados radicais de génese religiosa e outros que ao longo dos anos têm combatido as forças de Bashar Al Assad. Em Idlib refugiaram-se todos aqueles que foram sendo derrotados nos locais que as forças do regime têm vindo a reconquistar. Perante a derrota militar (por exemplo em Ghouta Oriental, em Aleppo ou em Daraa...), as negociações para o cessar-fogo e a rendição dos rebeldes incluíram a saída desses locais, em grandes comboios de autocarros, de rebeldes e respectivas famílias, em direcção a Idlib. O regime aceitou e cedo se percebeu qual era a intenção: ir agrupando os rebeldes, ir apertando o cerco e deixando cada vez menos alternativas. Se em várias fases da guerra uma das dificuldades do regime foi combater e dispersar forças em várias e distantes frentes de batalha, agora a situação é exactamente ao contrário. Para além da presença de grupos rebeldes que ainda existe no sul da Síria e na região de fronteira com o Iraque, é em Idlib que a resistência ao regime tem peso e expressão.

A população da região (cidade e arredores) cresceu e estima-se que seja superior a três milhões de pessoas, devido à chegada dos deslocados provenientes de outros locais. Há também relatos de uma presença significativa de combatentes do Estado Islâmico e de Frente Al Nusra (ou Jabaht Al Nusra), da Al Qaeda.

O regime sírio não esconde a movimentação de forças que constroem uma tenaz em redor de Idlib, aliás dá notícia de movimentações em tudo semelhantes a outras que levaram à reconquista de outras parcelas de território. Bashar Al Assad disse que queria reconquistar todo o território e não vai desistir desse propósito, principalmente quando a situação no terreno lhe é favorável. Disse no final de Julho que “agora, o objectivo é Idlib”. O regime fala em reconciliação e apela aos civis para cooperarem com as forças governamentais ao mesmo tempo que já bombardeia localidades nos arredores de Idlib; os rebeldes não dão nenhum sinal de rendição. Os “barris-bomba” já são lançados na região rural e mais a sul de Idlib. Já há civis em fuga, mas dentro da região cercada não há para onde fugir a não ser para a grande cidade.

É impossível saber como o Governo sírio e os aliados Rússia e Irão, vão querer resolver a questão de Idlib, sendo que já tivemos provas suficientes de que os bombardeamentos indiscriminados a zonas rebeldes nunca foram um problema durante os mais de sete anos de guerra. Por outro lado, se Bashar Al Assad pretende recuperar alguma credibilidade internacional, não vai querer ficar com um último massacre no currículo já de si tão manchado. O chefe da diplomacia turca alertou para a possibilidade de uma catástrofe em caso de assalto das forças governamentais. A Rússia diz que é preciso separar os “grupos rebeldes” dos “terroristas”, sendo que, já se sabe, que é terrorista para uns não é terrorista para outros.

Do lado dos rebeldes, perante a ausência de alternativas, alguns grupos poderão aceitar um processo de reconciliação, embora seja pouco confiável a garantia de uma reintegração em zonas controladas pelo Governo; outros grupos, mais radicais, que recusam qualquer reconciliação, podem aspirar a uma eventual retirada à imagem do que aconteceu noutras zonas, o problema é saber para onde. A Turquia não deve estar pelos ajustes e não se vislumbra que países podem eventualmente aceitar receber os combatentes mais radicais. Resta a zona curda, norte da Síria, mas a relação dos radicais com as milícias curdas nunca foi boa, antes pelo contrário, e até a região curda está na lista dos territórios que Bashar Al Assad quer reconquistar.

Em Idlib, três milhões de pessoas estão à espera. As organizações de ajuda humanitária dizem que já não têm capacidade de auxiliar toda a gente; os campos de deslocados estão a abarrotar. Se nada for feito, a chamada comunidade internacional arrisca-se a assistir a algo em relação ao qual vamos ver depois as “lágrimas de crocodilo” e os discursos carregados de lamentos e emoção. Não chega!

Pinhal Novo, 20 de Agosto de 2018
josé manuel rosendo