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terça-feira, 17 de março de 2020

Uma lição para a vida

Rass Je Dir, ponto de entrada na Líbia, na fronteira com a Tunísia, 24 de Agosto de 2011. Foto: jmr 

Esperemos que tudo acabe em bem. Esperemos que nos saibamos comportar como uma sociedade adulta, de gente que gosta de contar anedotas brejeiras e algumas até de contornos racistas (não, não estou a ser condescendente...) mas que lá no fundo tenha uma noção de civismo e solidariedade (noção de causa comum) que ajude a ultrapassar a crise.


Quem diria que Portugal, a Europa e o chamado mundo desenvolvido, viriam a estar perante uma ameaça tal, que são os “países em desenvolvimento”, para se protegerem, que bloqueiam a entrada de europeus???? Leio o artigo de Maria João Guimarães no Público e registo as voltas que o Mundo dá. https://www.publico.pt/2020/03/16/mundo/noticia/coronavirus-poe-mundo-contrario-paises-pobres-erguem-barreiras-paises-ricos-1907895 O título refere um Mundo ao contrário? Será? Os europeus a sentirem o que os refugiados têm sentido ao longo dos últimos anos? E será que os europeus – se nos quisermos escapar para África, por exemplo - vão ser considerados refugiados ou migrantes (sempre achei ridícula a distinção estabelecida pelo Direito Internacional)? Isto é: se a tal ponto chegássemos, não estaríamos a fugir de uma guerra. Mas estaríamos a fugir da morte, tal como fogem aqueles que nasceram em países onde a miséria, mesmo sem guerra, lhes ameaça a sobrevivência. Haverá grande diferença entre fugir de um vírus assassino ou de um país onde não há água, nem alimentos, nem escola, nem hospitais, nem futuro...?


Nas últimas horas ouvi dois políticos (Emmanuel Macron e Marta Temido) compararem a pandemia do novo coronavírus a uma situação de guerra. Não, não sabem do que estão a falar. Não insultem os que são vítimas da guerra. Comparar a situação que estamos a viver, gravíssima, sem dúvida, a uma situação de guerra, é, no mínimo, uma leviandade e, se traduzida em títulos de notícias, uma estupidez ainda maior. A foto que ilustra este texto é apenas um dos muitos retratos em que se traduz uma guerra: entra num país (Líbia) e ter apenas uma estrada vazia pela frente. Não há pessoas, não há carros, não há vida. E é preciso seguir em frente. Por estes dias, José Gil também nos falou sobre o medo.


Estar a viver uma guerra é passar semanas e meses escondido em caves de edifícios e não saber onde vai cair a bomba que se ouve a assobiar; é ouvir o ronco dos bombardeiros a uma altitude tal que mal se conseguem ver, a não ser quando reflectem a luz do sol; é ouvir o trabalhar das pás dos helicópteros e não saber onde vai cair o bidon cheio de explosivos que é lançado de forma aleatória; é ouvir, ao longe, os tiros da artilharia; é ter medo de sair de casa para ir comprar pão porque há atiradores furtivos; é ter medo de ficar doente porque não há médicos, nem hospitais, nem medicamentos; é ter filhos a pedir pão e não saber onde o ir buscar; é ver morrer familiares e amigos, mulheres e crianças, novos e velhos. É isso que é a guerra, sofrida por quem nada fez para que ela, a guerra, lhe mudasse a vida.

É certo que poderemos fazer as mais variadas analogias para sustentar a ideia de que estamos em guerra, mas antes de o fazer talvez devêssemos trocar umas ideias sobre o assunto. Por exemplo, saber que efeito teria o dinheiro aplicado em salvar bancos se tivesse sido investido no Serviço Nacional de Saúde; saber se já todos perceberam que a Saúde não é uma mercadoria à mercê dos apetites do Mercado; saber se aqueles que ajudaram a espatifar o Serviço Nacional de Saúde – e a Escola Pública, e os transportes públicos, e as Forças de Segurança, e as Forças Armadas – não deviam ter o pudor de estar calados antes que alguém lembre a lista de asneiras que têm no currículo. Esses, muitos deles, afinam agora a prosa e exigem, exigem, criticam, criticam, dizendo que está tudo mal, esquecendo-se da forma como, por vontade própria, assinaram a destruição de um Estado e quase venderam um país. Há quem tenha memória.


Estamos, de facto, numa situação muito complicada, mas fomos nós que criámos – ou assistimos pacificamente – ao desmantelamento das estruturas que agora teriam uma resposta mais eficaz para os problemas que enfrentamos.


Medo, todos sentimos. Mas o medo controla-se, o que não significa que seja a salvação. Essa, a salvação, se a queremos ter por perto, teremos de fazer alguma coisa por isso. Se tudo correr bem, estamos a tempo de aprender a lição.


Pinhal Novo, 17 de Março de 2020
josé manuel rosendo

domingo, 15 de setembro de 2019

Afeganistão, 18 anos de guerra para a qual já não há argumentos.


 
Afeganistão, Cabul, comício de candidato presidencial em Agosto de 2009. Foto: jmr
É dos livros: a paz faz-se com os inimigos! Por mais ou menos (in)justiça que se queira encontrar numa guerra, tendo ou não havido lugar a atrocidades, quando é preciso assinar um acordo de paz as assinaturas que vão constar no documento terão de ser as daqueles que até aí se combateram. E as guerras, todas, têm um fim.


Tal como no Vietname, Os Estados Unidos vão ter de sair do Afeganistão, faltando apenas saber como será essa retirada. Da mesma forma que abandonaram Saigão, vencidos e humilhados, com os helicópteros a retirarem pessoas em pânico da embaixada norte-americana, ou de forma serena e sem ser a fugir do inimigo? A então União Soviética – derrotada, é certo – saiu do Afeganistão sem ser humilhada, numa retirada acordada e programada com o inimigo. A Rússia esteve quase 10 anos no Afeganistão; os Estados Unidos já lá estão há quase 18.

Fez a 11 de Setembro, 18 anos, que as torres gémeas e o Pentágono foram atacados, num acção, reconheçamos, de uma audácia e originalidade que surpreendeu o Mundo. Devido à violência e brutalidade pode ser difícil reconhecer que assim foi, mas muitos dos que estão a ler este texto recordam-se certamente de uma genuína reacção de incredibilidade: o que é isto? Um filme? Uma montagem...? Novas tecnologias? Foi preciso ver uma e outra e vezes sem conta, para percebermos que realmente aquilo – o ataque às Torres Gémeas e ao Pentágono – aconteceu mesmo e as imagens eram reais.

Não vale a pena repetir aqui a fórmula de que o Afeganistão é o cemitério dos impérios, mas os Estados Unidos sabem que mais tarde ou mais cedo vão ser obrigados – sim, obrigados -  a sair do Afeganistão. Ou isso, ou uma chacina com um preço político demasiado alto para qualquer inquilino da Casa Branca.

Em finais de Agosto, surgiu a notícia de que estava quase fechado um acordo entre os Talibã e os Estados Unidos, na sequência de longas negociações no Qatar. Zabihullah Mujahi, um porta-voz talibã, escreveu no twitter que o acordo estava próximo e esperava em breve poder dar boas notícias à nação muçulmana. A Shura reuniu-se na fronteira entre o Afeganistão e o Paquistão para avaliar o texto que estava a ser discutido no Qatar. Mas, de Washington, nunca chegou perspectiva do mesmo calibre. O Pentágono recusou falar em retirada, disse que é preciso assegurar que o Afeganistão não seja um santuário para ameaças aos Estados Unidos. O Ministro da Defesa, Mark Esper, disse que é preciso ver até onde eles (Talibã) chegam (nas condições de um acordo) e depois, então sim, poderá eventualmente falar-se de um acordo. Palavras cautelosas, tendo em conta que os Estados Unidos tinham como objectivo – sabe-se agora – fechar um acordo até às eleições presidenciais afegãs previstas para 28 de Setembro.

Aparentemente, o rascunho do acordo previa uma retirada relativa das tropas norte-americanas tendo como contrapartida que não fossem permitidas quaisquer acções da Al Qaeda ou do Estado Islâmico nos territórios que ficassem sob controlo Talibã. Donald Trump chegou a dizer que, em caso de acordo, dos actuais cerca de 14.000, 8.600 militares norte-americanos ficarão no Afeganistão (antes de deixar a Casa Branca, Barack Obama disse que iriam ficar 8.400), sem dizer por quanto tempo. A assinatura deste acordo significaria também um cessar-fogo e negociações de paz entre Talibã e Governo afegão. O emissário norte-americano para estas negociações, Zalmay Khalilzad, foi a Cabul mostrar o rascunho de acordo ao Presidente afegão, Ashraf Ghani. Um porta-voz de Ashraf Ghani chegou a dizer que o acordo previa um cessar-fogo e que poderia dar algum resultado desde que Talibã e Governo afegão (que não participou nestas negociações) negociassem directamente.

Talibã e Estados Unidos reconheceram que a guerra não tem uma solução militar e foi esse o ponto de partida para as negociações que começaram há cerca de um ano.

Ao longo destes 18 anos, os Estados Unidos chegaram a apostar no General David Petreaus para travar a insurgência no Afeganistão. O homem que travara, ou assim parecia...) a Al Qaeda no Iraque, e que viria a ser director da CIA, foi para o Afeganistão tentar replicar a estratégia que permitiu algum controlo da imensa província iraquiana de Al Anbar, santuário da Al Qaeda. Depressa percebeu que o Afeganistão era diferente. Esteve por lá um ano e virou costas, pouco depois de os Estados Unidos anunciarem a morte, em Maio de 2011, de Ossama Bin Laden – promessa anunciada logo após o 11 de Setembro e, por fim, cumprida.

Para além de Bin Laden, também vários líderes da Rede Haqqani, principal braço-armado talibã, foram abatidos nos últimos anos, mas nem isso enfraqueceu a insurgência. De uma forma pragmática, que alguns em Washington reconhecem, não há dúvidas sobre a deterioração da situação no Afeganistão. Os Talibã têm vindo a recuperar terreno, controlam uma grande parte do território e não existe nenhuma perspectiva de que esta tendência possa mudar. Os Estados Unidos continuam a somar baixas e a jogar à defesa denunciando a incapacidade para fazer outra coisa a não ser evitar um maior número de caixões cobertos com a bandeira dos Estados Unidos. Os ataques frequentes, desde há muitos anos, naquela que é a zona mais segura da capital afegã, são um sinal evidente da resiliência Talibã e da incapacidade norte-americana/Governo afegão, para susterem e anularem o inimigo.

É certo que mesmo com as negociações a decorrer e com o emissário norte-americano em Cabul para apresentar o acordo ao Presidente afegão, os Talibã continuaram os ataques, mas não deixa de ser caricato que Donald Trump, no fim de tudo isto, tenha dito que acabaram as conversas com os Talibã porque, num desses ataques recentes, morreu um militar norte-americano. Donald Trump também cancelou um encontro, em separado, em Camp David – até então mantido em segredo – com representantes Talibã e o Presidente afegão. Da expectativa de um acordo que acabasse com a mais longa guerra em que os Estados Unidos alguma vez se envolveram, passou-se para um ranger de dentes ainda mais feroz com Donald Trump a prometer atacar os Talibã de uma forma até agora nunca vista. A reacção não se fez esperar e os Talibã ameaçam “fazer sofrer a América”. O porta-voz Zabihullah Mujahid disse que há duas maneiras de acabar com a ocupação do Afeganistão: através da guerra ou de negociações, e acrescentou que se Trump não quer negociar, muito em breve vai arrepender-se de escolher o caminho da guerra.

Também é certo que se houver uma retirada o Afeganistão dificilmente encontrará a paz e poderá até mergulhar numa guerra civil, mas não é menos verdade que essa guerra civil já existe, sendo que a única diferença é a influência exercida pelas forças estrangeiras presentes no Afeganistão.

Se os arquivos da Casa Branca guardarem o que lhes é enviado do Afeganistão, vão certamente encontrar uma carta aberta enviada pelos Talibã, em Agosto de 2017. Nessa carta, o “Emirado Islâmico do Afeganistão” lembra que já foram aliados dos Estados Unidos e desafia Trump a ficar na história como o Presidente dos Estados Unidos que não deixa as questões da guerra apenas nas mãos dos militares que têm interesses próprios para manter esta guerra. Em duas dezenas de parágrafos há espaço para uma mensagem que devia fazer pensar Donald Trump: “No Afeganistão, cada pai ensina aos filhos a emancipação do país em relação aos invasores. Num país onde cada criança é criada com um espírito de vingança e detém a honra histórica de derrotar três impérios antes da invasão dos Estados Unidos, como conseguirão os norte-americanos uma situação estável para uma presença permanente? Todos percebem que o principal motor da guerra no Afeganistão é a ocupação estrangeira”.

Pinhal Novo, 15 de Setembro de 2019
josé manuel rosendo

segunda-feira, 20 de agosto de 2018

Idlib, a última batalha da guerra na Síria?



O Estado Islâmico esperava uma última batalha em Dabiq, cidade do noroeste da Síria, onde supostamente teria lugar a batalha do fim dos tempos entre muçulmanos e infiéis. O Profeta Maomé terá dito que o Apocalipse não chegaria antes de os Muçulmanos vencerem os romanos (há historiadores que consideram ser uma referência aos cristãos) em Dabiq ou Al Amaq (na província turca de Hatay), ambas na região de fronteira turco-síria. Depois da derrota militar do Estado Islâmico, esquecida a batalha do fim dos tempos, certo é que não muito longe destas duas cidades de grande valor simbólico, uma outra cidade (e província), Idlib, vê criadas as condições para aquela que poderá ser a última batalha da guerra na Síria. Uma última batalha que tem todos os ingredientes para ser também um banho de sangue, quiçá muito maior do que aqueles a que os mais de sete anos de guerra já produziram.



Em Idlib concentra-se a maior bolsa de forças anti-governamentais, que inclui grupos armados radicais de génese religiosa e outros que ao longo dos anos têm combatido as forças de Bashar Al Assad. Em Idlib refugiaram-se todos aqueles que foram sendo derrotados nos locais que as forças do regime têm vindo a reconquistar. Perante a derrota militar (por exemplo em Ghouta Oriental, em Aleppo ou em Daraa...), as negociações para o cessar-fogo e a rendição dos rebeldes incluíram a saída desses locais, em grandes comboios de autocarros, de rebeldes e respectivas famílias, em direcção a Idlib. O regime aceitou e cedo se percebeu qual era a intenção: ir agrupando os rebeldes, ir apertando o cerco e deixando cada vez menos alternativas. Se em várias fases da guerra uma das dificuldades do regime foi combater e dispersar forças em várias e distantes frentes de batalha, agora a situação é exactamente ao contrário. Para além da presença de grupos rebeldes que ainda existe no sul da Síria e na região de fronteira com o Iraque, é em Idlib que a resistência ao regime tem peso e expressão.

A população da região (cidade e arredores) cresceu e estima-se que seja superior a três milhões de pessoas, devido à chegada dos deslocados provenientes de outros locais. Há também relatos de uma presença significativa de combatentes do Estado Islâmico e de Frente Al Nusra (ou Jabaht Al Nusra), da Al Qaeda.

O regime sírio não esconde a movimentação de forças que constroem uma tenaz em redor de Idlib, aliás dá notícia de movimentações em tudo semelhantes a outras que levaram à reconquista de outras parcelas de território. Bashar Al Assad disse que queria reconquistar todo o território e não vai desistir desse propósito, principalmente quando a situação no terreno lhe é favorável. Disse no final de Julho que “agora, o objectivo é Idlib”. O regime fala em reconciliação e apela aos civis para cooperarem com as forças governamentais ao mesmo tempo que já bombardeia localidades nos arredores de Idlib; os rebeldes não dão nenhum sinal de rendição. Os “barris-bomba” já são lançados na região rural e mais a sul de Idlib. Já há civis em fuga, mas dentro da região cercada não há para onde fugir a não ser para a grande cidade.

É impossível saber como o Governo sírio e os aliados Rússia e Irão, vão querer resolver a questão de Idlib, sendo que já tivemos provas suficientes de que os bombardeamentos indiscriminados a zonas rebeldes nunca foram um problema durante os mais de sete anos de guerra. Por outro lado, se Bashar Al Assad pretende recuperar alguma credibilidade internacional, não vai querer ficar com um último massacre no currículo já de si tão manchado. O chefe da diplomacia turca alertou para a possibilidade de uma catástrofe em caso de assalto das forças governamentais. A Rússia diz que é preciso separar os “grupos rebeldes” dos “terroristas”, sendo que, já se sabe, que é terrorista para uns não é terrorista para outros.

Do lado dos rebeldes, perante a ausência de alternativas, alguns grupos poderão aceitar um processo de reconciliação, embora seja pouco confiável a garantia de uma reintegração em zonas controladas pelo Governo; outros grupos, mais radicais, que recusam qualquer reconciliação, podem aspirar a uma eventual retirada à imagem do que aconteceu noutras zonas, o problema é saber para onde. A Turquia não deve estar pelos ajustes e não se vislumbra que países podem eventualmente aceitar receber os combatentes mais radicais. Resta a zona curda, norte da Síria, mas a relação dos radicais com as milícias curdas nunca foi boa, antes pelo contrário, e até a região curda está na lista dos territórios que Bashar Al Assad quer reconquistar.

Em Idlib, três milhões de pessoas estão à espera. As organizações de ajuda humanitária dizem que já não têm capacidade de auxiliar toda a gente; os campos de deslocados estão a abarrotar. Se nada for feito, a chamada comunidade internacional arrisca-se a assistir a algo em relação ao qual vamos ver depois as “lágrimas de crocodilo” e os discursos carregados de lamentos e emoção. Não chega!

Pinhal Novo, 20 de Agosto de 2018
josé manuel rosendo