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domingo, 5 de abril de 2020

Ficar em casa? Sim, mas... qual casa?

Gevgelija, refugiados entram na República da Macedónia, 27 de Agosto de 2015. Foto: jmr 

Esta questão não se coloca para muitos, mas coloca-se certamente para outros tantos muitos. Para aqueles que não fazem a segunda pergunta, das duas que constituem o título deste texto, devemos admitir, como escreveu um dia destes no jornal Público, Faranaz Keshavjee, “(...) há guerras e guerras. E esta é uma que carrega muitos privilégios. Muitos. É só olhar (à volta)”. Aquilo a que nos obrigam é a um confinamento – porque será que há sempre uma palavra tão complicada para coisas tão simples? Bastaria dizer: estão obrigados a ficar em casa. Adiante. Ainda para aqueles que não fazem a segunda pergunta, das duas que fazem parte do título deste texto, interessa registar que, limitada a liberdade de movimentos, a “prisão” tem o aconchego da casa de cada um: família, tecto, cama, roupa lavada, livros e tecnologia, janela ou varanda com vista para rua, e umas saídas para as excepções conhecidas com as quais não vos vou maçar. Fazendo uma cedência à utilização da palavra “guerra” para caracterizar o que estamos a enfrentar, é uma guerra com muito conforto.

Agora, vamos aos que não podem deixar de fazer a segunda pergunta, das duas que constituem o título deste texto. Quem são e onde estão esses tantos muitos? E que resposta lhe pode ser dada.
Desde logo, por cá, os que vivem na rua; os que vivem em barracas a que chamam casa, onde se está pior do que na rua; os que não tendo mais nada para perder, viram cerceada a única coisa que tinham, a Liberdade.
Depois, noutras geografias, pensemos nos milhões de refugiados. Na Europa, há notícias da suspensão de programas de acolhimento e dos procedimentos de pedidos de asilo (na Alemanha, os serviços que tratam de 1,3 milhões de requerentes de asilo e de outros migrantes/refugiados, estão quase totalmente de portas fechadas; em França, Callais, a Agência France Press dá conta que cerca de 2.200 “migrantes” deixaram de receber ajuda alimentar porque as próprias ONG deixaram quase de ir ao terreno).

Depois, basta focarmo-nos na Grécia, onde a desgraça já era evidente, e na catástrofe que poderá acontecer se o coronavírus se propagar num dos campos de refugiados. Há dezenas de milhar de pessoas nos campos em toda a Grécia e já há casos confirmados. Pelo menos dois campos foram colocados em isolamento – entenda-se de portas fechadas e vigiados pela polícia. Este “isolamento” pode evitar que o vírus se propague para o exterior dos campos mas não resolve o problema a quem vive nos campos, sobrando uma pergunta: como se faz o distanciamento social em campos onde a sobrelotação é conhecida e o espaço é mínimo (por exemplo, o campo de Mória devia ter 3.000 pessoas e tem 20.000); como se mantêm medidas de higiene quando por vezes tudo falta, incluindo água (e sabão) e cuidados médicos – os Médicos Sem Fronteiras dizem que, no campo de Mória (Ilha de Lesbos), há três médicos para 20.000 pessoas? Como se faz distanciamento social se tudo é colectivo: pontos de água, duches, casas de banho?

Ao contrário dos que não chegam a fazer a segunda pergunta, das duas que constituem o título deste texto, os refugiados não têm tecto, não têm roupa lavada, não têm o frigorífico abastecido, não têm água nem sabão. Até agora tinham-se uns aos outros no amparo das dificuldades. E após anos em que foram mantidos “uns em cima dos outros”, em espaços mínimos, pedem-lhes o impossível: que mantenham a distância. Pode ser o mote para alguma tirada de humorista, mas não passará disso. E certamente não provocará um sorriso a ninguém.

Como descreveu o jornal La Vanguardia, as recomendações da OMS são um luxo impossível no campo de refugiados de Moria, em Lesbos.

A União Europeia “empurrou com a barriga” a resolução do problema dos campos de refugiados na Grécia. Agora, soma um problema ao problema da pandemia. O Governo grego já admitiu que tem uma “bomba sanitária” nas mãos. Como habitualmente, as declarações dos responsáveis políticos pretendem levar-nos a acreditar que algo está a ser feito. Alguém acredita?


Pinhal Novo, 5 de Abril de 2020
josé manuel rosendo

terça-feira, 17 de março de 2020

Uma lição para a vida

Rass Je Dir, ponto de entrada na Líbia, na fronteira com a Tunísia, 24 de Agosto de 2011. Foto: jmr 

Esperemos que tudo acabe em bem. Esperemos que nos saibamos comportar como uma sociedade adulta, de gente que gosta de contar anedotas brejeiras e algumas até de contornos racistas (não, não estou a ser condescendente...) mas que lá no fundo tenha uma noção de civismo e solidariedade (noção de causa comum) que ajude a ultrapassar a crise.


Quem diria que Portugal, a Europa e o chamado mundo desenvolvido, viriam a estar perante uma ameaça tal, que são os “países em desenvolvimento”, para se protegerem, que bloqueiam a entrada de europeus???? Leio o artigo de Maria João Guimarães no Público e registo as voltas que o Mundo dá. https://www.publico.pt/2020/03/16/mundo/noticia/coronavirus-poe-mundo-contrario-paises-pobres-erguem-barreiras-paises-ricos-1907895 O título refere um Mundo ao contrário? Será? Os europeus a sentirem o que os refugiados têm sentido ao longo dos últimos anos? E será que os europeus – se nos quisermos escapar para África, por exemplo - vão ser considerados refugiados ou migrantes (sempre achei ridícula a distinção estabelecida pelo Direito Internacional)? Isto é: se a tal ponto chegássemos, não estaríamos a fugir de uma guerra. Mas estaríamos a fugir da morte, tal como fogem aqueles que nasceram em países onde a miséria, mesmo sem guerra, lhes ameaça a sobrevivência. Haverá grande diferença entre fugir de um vírus assassino ou de um país onde não há água, nem alimentos, nem escola, nem hospitais, nem futuro...?


Nas últimas horas ouvi dois políticos (Emmanuel Macron e Marta Temido) compararem a pandemia do novo coronavírus a uma situação de guerra. Não, não sabem do que estão a falar. Não insultem os que são vítimas da guerra. Comparar a situação que estamos a viver, gravíssima, sem dúvida, a uma situação de guerra, é, no mínimo, uma leviandade e, se traduzida em títulos de notícias, uma estupidez ainda maior. A foto que ilustra este texto é apenas um dos muitos retratos em que se traduz uma guerra: entra num país (Líbia) e ter apenas uma estrada vazia pela frente. Não há pessoas, não há carros, não há vida. E é preciso seguir em frente. Por estes dias, José Gil também nos falou sobre o medo.


Estar a viver uma guerra é passar semanas e meses escondido em caves de edifícios e não saber onde vai cair a bomba que se ouve a assobiar; é ouvir o ronco dos bombardeiros a uma altitude tal que mal se conseguem ver, a não ser quando reflectem a luz do sol; é ouvir o trabalhar das pás dos helicópteros e não saber onde vai cair o bidon cheio de explosivos que é lançado de forma aleatória; é ouvir, ao longe, os tiros da artilharia; é ter medo de sair de casa para ir comprar pão porque há atiradores furtivos; é ter medo de ficar doente porque não há médicos, nem hospitais, nem medicamentos; é ter filhos a pedir pão e não saber onde o ir buscar; é ver morrer familiares e amigos, mulheres e crianças, novos e velhos. É isso que é a guerra, sofrida por quem nada fez para que ela, a guerra, lhe mudasse a vida.

É certo que poderemos fazer as mais variadas analogias para sustentar a ideia de que estamos em guerra, mas antes de o fazer talvez devêssemos trocar umas ideias sobre o assunto. Por exemplo, saber que efeito teria o dinheiro aplicado em salvar bancos se tivesse sido investido no Serviço Nacional de Saúde; saber se já todos perceberam que a Saúde não é uma mercadoria à mercê dos apetites do Mercado; saber se aqueles que ajudaram a espatifar o Serviço Nacional de Saúde – e a Escola Pública, e os transportes públicos, e as Forças de Segurança, e as Forças Armadas – não deviam ter o pudor de estar calados antes que alguém lembre a lista de asneiras que têm no currículo. Esses, muitos deles, afinam agora a prosa e exigem, exigem, criticam, criticam, dizendo que está tudo mal, esquecendo-se da forma como, por vontade própria, assinaram a destruição de um Estado e quase venderam um país. Há quem tenha memória.


Estamos, de facto, numa situação muito complicada, mas fomos nós que criámos – ou assistimos pacificamente – ao desmantelamento das estruturas que agora teriam uma resposta mais eficaz para os problemas que enfrentamos.


Medo, todos sentimos. Mas o medo controla-se, o que não significa que seja a salvação. Essa, a salvação, se a queremos ter por perto, teremos de fazer alguma coisa por isso. Se tudo correr bem, estamos a tempo de aprender a lição.


Pinhal Novo, 17 de Março de 2020
josé manuel rosendo