“Quer um Curdistão independente?”, é a pergunta a que os
curdos vão responder em referendo no próximo dia 25 de Setembro. É pelo menos o
que está anunciado, mas já lá vamos.
Teria de recorrer aos velhos cadernos de notas para ser
rigoroso na data, mas nem é isso o mais importante. Foi há cerca de uma dezena
de anos, quando andei em reportagem no Curdistão iraquiano que a Turquia
bombardeava para atingir as bases do PKK (Partido dos Trabalhadores do
Curdistão), que calcorreei as montanhas na companhia de um camarada repórter de
imagem. Valeu-nos um grupo de crianças curdas que nos ajudaram a transportar o
equipamento. Não teríamos conseguido, sem essa ajuda, subir aqueles montes atapetados
de vegetação seca. E não tínhamos nada para compensar as crianças que fizeram
questão de nos ajudar. Mas no final desse episódio, uma dessas crianças
estendeu-me a mão aberta: “toma, são nozes do Curdistão”. O gesto marcou-me.
Tenho as nozes guardadas, qual tesouro.
Isto serve como ponto prévio a este texto, assim a modos de
uma declaração de interesses. Não que o episódio referido seja suficientemente
importante para moldar a minha opinião no sentido de ser pró ou contra a
independência do Curdistão iraquiano, mas porque respeito o que considero ser o
direito dos curdos decidirem o seu destino. Na Turquia, no Iraque, na Síria, e
até com os poucos curdos iranianos que conheci, sempre fui tratado com
respeito. A simpatia do “outro” só não toca as almas insensíveis, mas esse afecto
recebido não me afasta da tentativa de análise honesta e o mais rigorosa possível
sobre o que poderão ser os próximos meses num território em que, há muito,
Independência é uma palavra dita com o coração.
A temperatura política no norte do Iraque atingiu valores muito
elevados desde que o Estado Islâmico irrompeu em Mossul, Kirkuk e Awija,
ameaçando até uma entrada em Erbil. Mais de três anos depois, a temperatura
volta a subir perigosamente. Desta vez não estamos perante algo que ameaça os
mais elementares Direitos Humanos, mas porque o Presidente da Região do
Curdistão, Massoud Barzani, assinou a 12 de Julho o decreto que convoca
eleições presidenciais e legislativas para o dia 1 de Novembro e o referendo
sobre a independência há muito que está anunciado para 25 de Setembro. Sobre
este referendo é obrigatório sublinhar que PDK, UPK (partidos históricos dos
curdos iraquianos) e outras treze forças políticas assinaram (7 de Junho de
2017) um acordo para convocar o referendo; fora deste acordo ficaram o Gorran
(Movimento para a Mudança, criado há menos de uma década, mas com implantação
crescente) e o GIK (Grupo Islâmico do Curdistão). Quem ficou fora do acordo não
foi por ser contra a independência, mas por discordar da metodologia e da forma
como o processo está a ser conduzido. Fechado o acordo, um comunicado da
presidência curda revelou que o referendo vai ter lugar também em regiões que o
Governo de Bagdad considera que não fazem parte da Região Autónoma do
Curdistão: Kirkuk, Makhmour, Sinjar (zona yazidi) e Khanaqin. Em algumas destas
regiões os Peshmerga combateram o Estado Islâmico e consolidaram o domínio
curdo.
Desta vez é a geopolítica pura a fazer subir a temperatura e
as consequências são absolutamente imprevisíveis, tal a complexidade que uma
eventual declaração de independência dos curdos do Iraque poderá provocar. Os
curdos iraquianos há muito que não escondem essa vontade independentista,
embora o discurso oficial tivesse evitado até agora um confronto de ruptura com
Bagdad. Nos últimos meses, sempre em crescendo, esse discurso oficial mudou e o
confronto afigura-se inevitável. Também nos últimos meses, até anos, a economia
– os dinheiros resultantes do petróleo que Bagdad devia enviar para Erbil – deu
o impulso que parecia faltar a esse discurso oficial dos curdos. Verdade seja
dita que o Governo Regional do Curdistão (GRC) é dono e senhor do território em
todas as suas vertentes, desde a defesa à segurança e à exploração petrolífera,
passando por aquilo que habitualmente entendemos por serviços públicos (saúde e
educação). Uma autonomia que cresceu por decisão dos curdos e também por uma
inépcia quase total de Bagdad, absorvida por outras prioridades e até por lutas
internas entre os que dominam o poder político.
O discurso oficial é pela independência, embora seja dito
que o Referendo não é para determinar se deve ou não ser declarada a
independência. Parece ambíguo, por vezes confuso e algumas declarações de altos
responsáveis curdos funcionam como uma espécie de amortecedor para uma
realidade (a da secessão) difícil de gerir, tanto em Erbil como em Bagdad. Por
exemplo, Nazem Dabbagh, o representante do GRC em Teerão, disse que o referendo
é uma táctica para pressionar o governo iraquiano a negociar aquilo que a
Constituição iraquiana prevê relativamente ao estatuto de Kirkuk (cidade na
fronteira entre os curdos e os árabes, actualmente controlada pelos Peshmerga,
mas com polícia iraquiana) e aos dividendos da exploração de petróleo. Este
responsável político acrescenta que os curdos sentem que o Iraque não os aceita
(“não aceita os outros”) e por isso têm de aproveitar todas as oportunidades
para fazer valer os seus direitos, e se a independência for o caminho, então
que seja. Um argumento que parece dizer: “nós nem queremos ser independentes,
mas não nos deixam alternativa”. É ainda Nazem Dabbagh que antevê a guerra que pode
seguir-se e afirma não ter dúvidas de que o exército iraquiano e as milícias
xiitas atacarão a região curda em caso haver caminho para a independência. A
resposta pronta a estas afirmações surgiu da parte de Rageh Saber Abboud al
Musawi, embaixador iraquiano também em Teerão: “Qualquer Estado curdo será um
nado-morto, espero que os curdos não escolham esse caminho perigoso”.
Olhando o mapa, para além da natural oposição do Governo de
Bagdad (que tem apoio do Irão), os curdos estão rodeados por países hostis a
uma eventual independência no norte do Iraque. Turquia, Síria (Al Assad, por
enquanto...) e Irão, não gostam da ideia de um Estado curdo independente no
Iraque porque sabem que será um exemplo que rapidamente poderá ter seguidores
nos seus próprios territórios.
Uma das “pedras no sapato” de que ninguém parece conseguir-se
livrar é o PKK (Partido dos Trabalhadores do Curdistão). Para a Turquia, o PKK
é uma organização terrorista (tal como para os Estados Unidos da América e
União Europeia – apesar das manifestações curdas em Bruxelas onde aparecem as
fotografias do líder do PKK, Abudallah Ocalan), idem para o Irão e para o
governo iraquiano. Mas o certo é que, tal como os Peshmerga, o PKK combateu o
Estado Islâmico no Iraque e também na Síria. Quanto ao GRC, mantém uma atitude
ambivalente: oficialmente não apoia o PKK, mas o certo é que os
independentistas curdos da Turquia têm bases no Curdistão iraquiano e, se nos
dermos ao trabalho de entrar em algumas casas curdas vamos encontrar, em muitas
delas, a fotografia de Abdullah Ocalan, em tamanho grande, num lugar de honra
de uma das paredes. Por outro lado, o mesmo GRC mantém uma ligação estreita com
a Turquia e sabe que, num futuro que poderá não estar assim tão distante, o PKK
poderá vir a ser um rival regional para o PDK (Partido Democrático do
Curdistão) que domina a política curda iraquiana, a par da UPK (União
Patriótica do Curdistão).
O vizinho mais directamente interessado na questão curda, é
precisamente a Turquia. Pelos motivos já referidos e também porque os turcos
são o maior parceiro comercial do GRC. As trocas comerciais têm vindo a crescer
nos últimos anos e é através da Turquia que o GRC exporta o petróleo extraído
na região de Kirkuk. A região do Curdistão iraquiano tem reservas de 45 mil
milhões de barris de petróleo, mas a Constituição iraquiana estabelece que todo
o petróleo do país é gerido por uma organização governamental que distribui as
receitas por todas as regiões do país cabendo aos curdos 17%. Os curdos sentem
que têm riquezas suficientes para lhes garantir a independência e não precisam
de Bagdad. Aliás, acusam o Governo iraquiano de não cumprir a Constituição, não
apenas em relação à receita do petróleo, mas também reclamam uma elevadíssima
indemnização pelo sofrimento provocado no tempo de Saddam Husseín e que, dizem
os curdos, Bagdad nunca fez nada para pagar. O Ministro dos Mártires e dos
Assuntos de Anfal (conjunto de operações militares em 1988 quando tropas de
Bagdad mataram dezenas de milhares de curdos – TPI classificou o caso como um
genocídio), Mahmood Salih Hama Karim, disse recentemente que a estimativa curda
apontava para uma indemnização de 400 mil milhões de dólares. Este argumento, e
outros, mostram como o GRC alinha motivos para justificar um caminho que deixa
Bagdad cada vez mais longe e a independência cada vez mais perto.
Ainda em relação a Kirkuk, uma cidade arabizada por Saddam
Husseín, e que a partir de 2003 viu regressar grande parte da população curda
que tinha sido banida, a Constituição iraquiana aprovada em 2005, estabelecia
que devia ter sido feito um referendo até final de 2007, para determinar se a
população pretendi fazer parte da região do Curdistão ou da região árabe do
Iraque. Foi sucessivamente adiado e nunca concretizado. Agora, o presidente
Barzani já veio dizer que Kirkuk deixou de ser “território disputado” e vai
participar no Referendo sobre a independência. Neste caso concreto, Bagdad não
terá muitos argumentos uma vez que não cumpriu o que a Constituição
estabelecia.
Em paralelo aos meses difíceis que se aproximam, o Curdistão
vive uma crise política interna que tem sido abafada pela situação de guerra
com o Estado Islâmico. Desde logo o Presidente Massoud Barzani mantém-se em
funções apesar do mandato ter expirado em 2013. Ao vencer as presidenciais de
2009, Barzani anunciou que não voltaria a candidatar-se, mas continua
Presidente. O Parlamento, eleito em 2013, não tem sessões desde Outubro de
2015. A interrupção dos trabalhos deve-se ao desentendimento entre o partido de
Barzani (PDK) e o aliado governamental (Gorran – Movimento para a Mudança). O
PDK acusou o Gorran de fomentar os protestos violentos, principalmente em
Suleimania, tendo como pano de fundo o atraso no pagamento de salários dos
funcionários públicos. O Gorran, por seu lado, retirou (ou a isso foi obrigado)
quatro dos ministros que faziam parte do Governo de coligação. Recentemente, o
Presidente anunciou que vão ser criadas as condições para que o Parlamento regresse
aos trabalhos de modo a poder ser realizado o referendo.
A questão do referendo é um desafio enorme para todas as
forças políticas: se o SIM vencer e se a Independência for concretizada, o
partido político que estiver no poder ficará com uma enorme vantagem
estratégica.
Em termos internacionais, União Europeia, Reino Unido,
Estados Unidos e Turquia tentam desencorajar o GRC de avançar com o referendo.
Os Estados Unidos argumentam com as eleições iraquianas previstas para 2018 e a
necessidade de não criar um novo foco de instabilidade; a União Europeia manifestou
apoio à diversidade e à integridade territorial do Iraque; à Turquia parece
bastar que os negócios corram de feição e tudo o que diga respeito a
independência dos curdos, mesmo que seja no Iraque, é motivo de preocupação. Aliás,
a Turquia tem uma poderosa arma que até poderá funcionar como “veto” à eventual
independência curda no Iraque: todo o petróleo curdo é escoado pela Turquia e
dele depende a economia dos curdos. Se a Turquia disser que não autoriza a
passagem de mais petróleo curdo através do seu território se for declarada a
independência, tudo será mais complicado. Aqui chegados entram também Estados
Unidos e Rússia, porque o GRC tem acordos assinados com empresas das duas
potências para exploração e transporte de petróleo.
A ter em devida conta também, a reacção/aviso do Irão,
aliado do Governo de Bagdad. O Ministro dos Negócios Estrangeiros do Irão,
Javad Zarif, disse que o Referendo é uma escolha errada e terá um impacto na
segurança da região que poderá ser desastroso.
A juntar a toda esta complexidade há ainda o facto de o
Presidente do Iraque ser um curdo: Fuad Masum. Em 2014 sucedeu a Jalal
Talabani, também curdo, Presidente durante 9 anos. Fuad Masum apela ao diálogo
entre Erbil e Bagdad, mas sabe que, sendo curdo, não se pode revelar contra o
referendo, mantendo um discurso muito semelhante ao que chega de alguns
políticos curdos: fazer um referendo não significa que seja declarada a
independência. Em simultâneo deixa um alerta ao Governo iraquiano: o Artigo
140º da Constituição refere os “territórios disputados”. O tal que previa um
referendo em Kirkuk até final de 2007 e que nunca chegou a ser concretizado. A
ver vamos se vai mesmo haver referendo.
Pinhal Novo, 3 de Agosto de 2017
josé manuel rosendo
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