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domingo, 1 de março de 2020

Afeganistão: Acordo para retirada norte-americana está assinado, muito em breve saberemos o que valem as assinaturas

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Zalmay Khalilzad (enviado dos Estados Unidos para o Afeganistão) e Mullah Abdul Ghani Baradar (líder político Taliban) assinam o Acordo para a retirada norte-americana do Afeganistão. Foto Baher Amin/The Peninsula


Dezoito anos depois de entrarem no Afeganistão, os Estados Unidos entreabriram a porta de saída. As incertezas relativamente ao sucesso do Acordo assinado são tantas que a própria simbologia associada não as esconde: na mesa do Hotel Sheraton em Doha, no Qatar, onde se sentaram Zalmay Khalilzad (enviado dos Estados Unidos para o Afeganistão) e o Mullah Abdul Ghani Baradar (líder político Taliban), não tinha as habituais bandeiras nem as placas com os nomes dos protagonistas; no documento distribuído não há qualquer símbolo ou marca, sendo o texto impresso em páginas completamente despidas.

Outra marca, já não simbólica, mas muito significativa, é a forma repetida como os Taliban são referidos: “the Islamic Emirate of Afghanistan which is not recognized by the United States as a state and is known as the Taliban”. Em tradução livre será “o Emirado Islâmico do Afeganistão, que não é reconhecido pelos Estados Unidos Unidos como um Estado e é conhecido por Taliban”. A fórmula é repetida dezasseis (16!!!) vezes ao longo das três páginas e meia do Acordo

Este Acordo acaba por validar a velha fórmula de que a Paz é feita com o inimigo, tendo a particularidade de ser entre inimigos que já foram amigos, quando a presença soviética no Afeganistão era o alvo a combater. Os Estados Unidos invadiram o Afeganistão com o pretexto de dar caça a Bin Laden e à Al Qaeda, mas também convém lembrar que os Taliban aceitavam entregar Bin Laden, desde que fosse julgado no Afeganistão, o que os Estados Unidos não aceitaram. Apesar de Bin Laden ter sido morto pelos Estados Unidos há quase nove anos, os militares norte-americanos (e outros) não saíram do Afeganistão.

O que prevê o Acordo?

Grosso-modo, o Acordo impõe que o Afeganistão não possa ser utilizado por grupos que representem uma ameaça para a segurança dos Estados Unidos e aponta para uma data de retirada do Afeganistão de todas as forças militares estrangeiras: daqui a 14 meses.
Esta primeira questão coloca uma enorme dúvida: mesmo com a presença norte-americana no terreno, a actividade do Estado Islâmico tem sido em crescendo e a Al Qaeda não desapareceu no Afeganistão, será que os Taliban terão força e engenho para conseguir sozinhos o que os Estados Unidos não conseguiram?
Para já, no prazo de quatro meses e meio (135 dias a contar da data do Acordo), os Estados Unidos reduzem a presença militar para 8.600 militares (estima-se que sejam actualmente 12.000 a 13.000) acontecendo o mesmo, em termos proporcionais, com as forças dos países aliados; os Estados Unidos e os aliados retirarão totalmente de cinco bases militares.

Outro ponto do Acordo, o mais complicado, é a paz e o entendimento entre afegãos. O Acordo refere que o diálogo entre todos os afegãos, entenda-se Taliban, Governo e outras forças da sociedade afegã, deve começar a 10 de Março. Nesse dia, devem ser libertados 5 mil prisioneiros taliban e mil afectos ao governo de Cabul. Será um sinal de confiança entre as partes, exigido pelo Acordo, que prevê ainda a libertação de todos os prisioneiros nos três meses seguintes. Sobre a libertação de prisioneiros, o Presidente afegão, Ashraf Ghani, já disse que não, avisando que os Estados Unidos não decidem pelo governo de Cabul. Está criado um primeiro problema.

Na agenda das negociações entre afegãos deve constar um cessar-fogo permanente e os Estados Unidos comprometem-se a rever as sanções que aplicaram a membros dos Taliban, acrescentando que também o Conselho de Segurança da ONU fará o mesmo.

O Acordo assinado em Doha aplica-se apenas às áreas do território controladas pelos Taliban até à formação de um novo Governo afegão que resulte das negociações que vão começar já a 10 de Março. Desde logo convém não esquecer que o Governo afegão esteve arredado das negociações, embora tenha enviado uma delegação ao Qatar para assistir à Assinatura do Acordo e iniciar contactos com os Taliban. Os Taliban sempre recusaram sentar-se à mesa com o Governo e diziam que representava um “regime de marionetes”.

Este Acordo terá sido a parte mais fácil e será prematuro pensar que a paz no Afeganistão vai chegar rapidamente. A realidade é muito complexa e o país está destruído. Destruição em todos os sentidos, sendo que o mais complicado é um tecido social esfrangalhado e ódios acumulados por décadas de guerra. O que este Acordo significa, sem dúvida, é que as duas partes perceberam que nenhuma delas ia ganhar a guerra que têm feito uma à outra, mas também é verdade que estabeleceram um Acordo que depende de terceiros que não foram envolvidos nas negociações. Ou seja, a Paz no Afeganistão não ficou mais perto, e o eventual regresso das tropas norte-americanas a casa, apenas significa que os Estados Unidos lavam as mãos de uma guerra que iniciaram e deixam o campo afegão numa outra guerra quiçá ainda mais fratricida.

Pinhal Novo, 1 de Março de 2020
josé manuel rosendo

sábado, 20 de outubro de 2018

Afeganistão: Quanto valem eleições em tempo de guerra?

Foto: jmr/Afeganistão 2009


Mais ou menos à mesma hora que este texto está a ser publicado, muitos afegãos já acordaram para ir votar. Ou não, porque não sei se acreditam na democracia ou se afastaram definitivamente essa possibilidade após 17 anos de contacto muito directo com forças militares de muitos países democráticos.

Há 17 anos que o Afeganistão está em guerra, não faltando muito para igualar as duas décadas de guerra no Vietname. Manter a guerra e alimentar simultaneamente a ilusão de que é possível fazer eleições, com algum valor democrático, e que dessas eleições pode resultar um poder político com capacidade para reconstruir os laços quebrados da sociedade e iniciar um caminho de paz, só pode ser um erro tremendo ou a vontade de tudo continuar na mesma para que a guerra, também ela, possa continuar. Ingenuidade, não é, certamente.

A foto que ilustra este texto foi tirada em 2009 aquando das eleições presidenciais em que Hamid Karzai foi reeleito para um segundo mandato. Um enorme boletim de voto com as fotografias dos candidatos deixava atónita a maioria dos que se apresentavam nas assembleias de voto e é bem o retrato do que podem valer eleições num país como o Afeganistão. Não, não é que os afegãos não merecem a democracia, mas após guerras sucessivas, senhores da guerra, senhores tribais, traficantes de droga, estrangeiros a mandarem no país, ataques terroristas e uma lista infindável de carências, convenhamos que democracia e eleições são o menor dos problemas para um povo assim martirizado.

Em 2001, os Estados Unidos iniciaram a ocupação do Afeganistão em resposta aos ataques do 11 de Setembro. O mundo entendeu o ataque. Mas agora já é difícil entender que a ocupação continue. Barack Obama quis retirar do Afeganistão mas isso acabou por não acontecer. Donald Trump não fala nisso, embora existam alguns sinais. O mais recém-nomeado “emissário norte-americano para a paz no Afeganistão”, Zalmay Khalilzad, é um experiente diplomata de origem afegã que foi Embaixador dos estados Unidos na ONU, Iraque e Afeganistão. Na ONU era apelidado de “Rei Zal”, é descrito como tendo uma visão belicista da política internacional e fez parte da corte de falcões do presidente George W. Bush. Ainda assim, se há alguém, ido do Ocidente, que consiga descodificar a realidade local, é este homem. Mas descodificar não é necessariamente o mesmo que perseguir objectivos que sejam bons para os afegãos. O ex-Presidente afegão Hamid Karzai, era um homem de mão dos Estados Unidos (colocado na presidência interina logo após a invasão) e dos interesses que pretendem utilizar terra afegã, nunca conseguiu reduzir a resistência Talibã; o actual Presidente Ashraf Ghani, um académico, de etnia pashtun, tal como Karzai, tem fortes ligações aos Estados Unidos, escolheu o ziguezagueante Rashid Dostum para vice-Presidente e até agora não conseguiu qualquer melhoria em termos de segurança, antes pelo contrário.

Temos habitualmente acesso à informação com origem em fontes ocidentais que nos dão conta de atentados e ataques armados alegadamente visando a população civil. Ainda no início de Outubro a ONU disse registar com preocupação o aumento de ataques, atribuídos ao Estado Islâmico (a quem é atribuída responsabilidade pela maioria das vítimas) e aos Talibã. Mas do lado do “Emirato Islâmico do Afeganistão” (Talibã) há uma acusação semelhante às forças de ocupação dizendo que são elas as responsáveis pela maioria das vítimas e das aldeias afegãs destruídas, e revelando uma lista dos locais atacados, dos danos provocados e do número de mortos. Diversas fontes, investigadores e analistas, admitem que em 2018 a guerra no Afeganistão pode ser a mais mortal entre todas as guerras que estão a decorrer.   

Longe vão os tempos, no verão de 2009, quando a ISAF tentou implementar a chamada “comprehensive approach” que, numa tradução livre, terá significado uma tentativa de aproximação amigável. O problema é que apesar desta tentativa, as viaturas militares nunca deixaram de ter uma espécie de sinal de stop onde se via a palma aberta de uma mão acompanhada de uma mensagem que convidava a manter distância.

No Afeganistão nunca houve aproximação nem qualquer possibilidade de relação mais afável com a população pela simples razão de que os afegãos sabiam muito bem o que podiam esperar de forças militares invasoras. E as coisas têm vindo sempre a piorar.

Desde Janeiro de 2015 um grupo de Mujahideen jurou lealdade ao Califa Abu Bakr Al Bagdadi e o Estado Islâmico desenvolveu a sua presença no Afeganistão. Talibã e Estado Islâmico são inimigos, mas combatem os ocupantes com a mesma determinação e com o mesmo objectivo: fazê-los sair do país. Não se conhecem os verdadeiros motivos, mas desde há meia-dúzia de meses que os Estados Unidos negoceiam com dirigentes Talibã. O mais recente encontro foi a 12 de Outubro, no Catar. Negociar é a única solução em todos os conflitos e principalmente num país onde os Talibã controlam cerca de um terço do território.

Para este sábado, dia de eleições, os Talibã avisaram escolas e professores para que não colaborem ou participem nas eleições. Argumentam que das eleições vai sair um Parlamento que apenas serve para legitimar a ocupação e a presença dos invasores, considerando que é dever nacional e religioso de todos os afegãos boicotar o processo eleitoral. Já se sabe que na província de Kandahar as eleições foram adiadas devido a um atentado que matou o chefe da polícia e o chefe dos serviços secretos (não muito longe do local onde estava Scott Miller, comandante militar norte-americano) e que das sete mil assembleias de voto, mais de duas mil nem sequer vão abrir. A campanha eleitoral foi violenta: morreram 10 candidatos e houve alguns raptados. Perante os factos e a realidade política, soam absurdas todas as garantias de segurança que as autoridades afegãs apregoam relativamente ao dia das eleições. E em Abril do próximo ano estão previstas eleições presidenciais.

Pinhal Novo, 20 de Outubro de 2018
josé manuel rosendo

quarta-feira, 16 de agosto de 2017

Talibã escreveram a Donald Trump


Para não termos informação apenas de um dos “lados”, convém ter em atenção a informação que chega de outras origens. Cada um que analise à sua maneira.

Uma longa carta aberta dos Talibã já deve ter chegado às mãos do Presidente norte-americano. É um texto, com data de 15 de Agosto, em que o “Emirado Islâmico do Afeganistão” lembra Donald Trump de que após 16 anos de guerra, o Afeganistão está pior, os militares norte-americanos continuam a morrer e o país é governado por políticos corruptos apenas interessados nos seus próprios negócios.

O texto acusa as lideranças militares de mentirem e de fazerem chegar informação errada a Donald Trump, relativamente à situação no terreno, e acrescenta que os afegãos podem contar muito facilmente os caixões que diariamente são enviados para os Estados Unidos. Quanto aos supostos aliados políticos (governantes afegãos) dos Estados Unidos são acusados de enviar informação deturpada e de alguns deles, em simultâneo, estarem envolvidos em negócios com países. É o caso do General Abdul Rashid Dostum, um homem que já lutou em todas as barricadas (contra e a favor da União Soviética), fez parte da Aliança do Norte, esteve várias vezes exilado fora do Afeganistão e é o que habitualmente se designa por um “senhor da guerra”. Actualmente é Vice-presidente do Afeganistão. Os Talibã acusam-no de estar a construir uma aliança, fora do Afeganistão, para combater o Presidente Ashraf Ghani.

Em cerca de duas dezenas de parágrafos, o “Emirado Islâmico do Afeganistão” (Talibã), Donald Trump é desafiado a não cometer os erros dos seus antecessores e lembra Trump que os Talibã fizeram aos Estados Unidos o “maior favor internacional”: livraram os Estados Unidos e o Mundo da “praga comunista” (alusão à guerra que obrigou a União Soviética, em 1989, a retirar do Afeganistão). É perante este facto (que os Talibã dizem ter sido um “favor histórico” aos Estados Unidos) que o “Emirado Islâmico do Afeganistão” pergunta a Donald Trump se a recompensa é sujeitar os afegãos a serem governados por políticos criminosos, corruptos, imorais e incompetentes.

Na carta é feita a exigência de que os afegãos sejam tratados com generosidade, em pé de igualdade com os seus interlocutores, e não através de invasões e guerras que terminaram sempre com a derrota das potências invasoras. “Cemitério dos Impérios”, como frequentemente é lembrado, o Afeganistão já viu caírem por terra as intenções de britânicos, soviéticos e... os Estados Unidos já perceberam há muito que não vão vencer guerra nenhuma no país onde inicialmente apoiaram os Talibã contra a União Soviética. Os Talibã lembram a Donald Trump que não estão a fazer guerra por procuração, dizem que não recebem qualquer apoio externo e desafiam os Estados Unidos a provar que isso esteja a acontecer.

A carta termina com um apelo: a juventude norte-americana não nasceu para morrer nas montanhas e desertos do Afeganistão nem para ir matar civis num país tão distante dos Estados Unidos; Foi um erro histórico (dizem) ter enviado a juventude norte-americana para o Afeganistão e um “Presidente responsável” deve corrigir erros e evitar a morte de militares norte-americanos no Afeganistão.

Donald Trump é ainda convidado a ficar na história como um defensor da paz, que não deixa as questões da guerra apenas nas mãos dos militares que têm interesses próprios para manter essa guerra.

A questão da guerra é colocada de forma muito directa (tradução livre): “No Afeganistão, cada pai ensina aos filhos a emancipação do país em relação aos invasores. Num país onde cada criança é criada com um espírito de vingança e detém a honra histórica de derrotar três impérios antes da invasão dos Estados Unidos, como conseguirão os norte-americanos uma situação estável para uma presença permanente? Todos percebem que o principal motor da guerra no Afeganistão é a ocupação estrangeira”.

Os Talibã lembram a Donald Trump que, após 16 anos, com militares profissionais e experientes dos Estados Unidos e da NATO, com alta tecnologia e recursos económicos, não venceu esta guerra; e que também não irá vencer recorrendo a mercenários. A carta pede ao Presidente norte-americano que analise a realidade de “coração aberto” e tome decisões responsáveis.


Falta agora saber se haverá resposta de Donald Trump.


NOTAS:
1 - Portugal tem 10 militares integrados na Força NATO (RSM – Resolute Suport Mission) e 2 militares ao serviço da ONU (United Nations Assistance Mission in Afghanistan), no Afeganistão; dois militares portugueses morreram no Afeganistão quando estavam integrados na ISAF (International Security Assistance Force) - Primeiro-Sargento Comando João Paulo Roma Pereira (2005) e Soldado Paraquedista Sérgio Miguel Vidal Oliveira Pedrosa (2007).

2 – Os Estados Unidos anunciaram em Junho o envio de (mais) cerca de 4 mil soldados para o Afeganistão; desde 2001 morreram no Afeganistão cerca de 2.400 militares norte-americanos.

Pinhal Novo, 15 de Agosto de 2017
josé manuel rosendo