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segunda-feira, 2 de março de 2020

A carta dos Refugiados

Refugiado em Mitilin, Ilha de Lesbos, Grécia, 13 de Abril de 2016. Foto: jmr 

Não, não se trata da carta dos Direitos dos Refugiados, mas sim da carta da utilização dos mais desprotegidos como arma política. É a isto que a palavra vergonha se aplica. Sem aspas e com sublinhado.


A guerra na Síria levou o Presidente turco, Erdogan, a fazer o que o antigo Presidente líbio, Kadhafi, já fizera, e o que Presidente, Sissi, já ameaçou: “invadir” a Europa deixando passar refugiados (ameaças de Erdogan e Kadhafi) ou com os próprios nacionais (caso de Sissi), se o Egipto fosse arrastado para uma situação de instabilidade. Ironicamente, a União Europeia relaciona-se muito bem com pessoas que fazem este tipo de ameaças, mas relaciona-se mal com aqueles que acabam por ser as verdadeiras vítimas. E são vítimas, pelo menos, três vezes: vítimas da situação no país de onde fugiram, no país que tentaram atravessar e onde ficaram no limbo, e ainda de uma Europa que verdadeiramente não sabe o que há-de fazer com eles. Não referindo os traficantes, que exploram a má sorte alheia.

A crise vivida em 2015 e 2016, que provocou um ataque de nervos à Europa, foi abafada através de um acordo com a Turquia. Sabia-se que o assunto não estava resolvido e que não foi atingida nenhuma das metas estabelecidas – para além da vergonha que foi o acordo. Sabia-se tudo isso. E o que fez a União Europeia? Quase nada. Seguiu a máxima de “enquanto o pau vai e vem, folgam as costas”. E pronto, o pau regressou às costas.

Nos últimos dias, várias fontes referem cerca de 13 mil pessoas a tentarem passar a fronteira terrestre entre a Turquia e a Grécia; outras, muito menos, conseguiram atravessar o Mar Egeu e chegaram a território grego. Estima-se que 3,6 milhões de refugiados estejam na Turquia. E se todos, ou quase todos, com uma “ajuda” de Erdogan, decidirem meter-se ao caminho?

Voltaram a soar as campainhas de alarme na Europa. Forças de segurança foram enviadas para as fronteiras, a Áustria já admitiu fechar a fronteira como fez em 2015/16.

Em Abril de 2016 ouvi a mensagem do Papa Francisco, em Lesbos: “Não percam a esperança”. Francisco visitou o Campo de Moria, já por esses dias uma prisão, e não um campo de acolhimento. Agora, dizem os relatos, está muito pior. Ainda é possível manter a esperança?
Na ilha grega de Lesbos, estalou a revolta. Em Outubro do ano passado, o Conselho da Europa avisara: a situação é explosiva.

Também por esses dias, em Abril de 2016, tive oportunidade de ver/acompanhar o Primeiro-Ministro a visitar um campo de refugiados (Eleonas) na Grécia e de lhe perguntar se sabia que havia campos muito piores do que aquele que estava (onde o levaram?) a visitar. António Costa respondeu, algo enxofrado, que, tal como eu, também via televisão, e por isso conhecia a realidade. Não, não respondi que eu não vi campos piores apenas através da televisão. Senti-lhes o cheiro e sujei as botas. Falei com as pessoas. Com as que eu escolhi e não com as que me puseram à frente. No porto do Pireu havia refugiados instalados em armazéns. Era proibido tirar fotografias ou outro tipo de imagens. A Grécia tinha vergonha. Apesar de não ser utilizador do Instagram, vi que a Revista Sábado deu conta de fotos publicadas por António Costa ilustrando a visita ao Campo de Eleonas. Não, nada daquilo que António Costa mostrou, representa verdadeiramente o inferno vivido pela maioria dos refugiados. É certo que António Costa, por aqueles dias, deu entrevistas onde apontou o caminho a seguir: é preciso “mais Europa” para enfrentar um problema que é de todos. Mas nem todos querem, de facto, encontrar soluções.

Agora, mais uma vez, a União Europeia olha para Oriente, e para Sul. O problema desta Europa é ser uma União em que a diversidade, que deveria ser uma riqueza, torna quase impossível as decisões por consenso. Ou por maioria alargada. O multilateralismo perde terreno e os países com democracias mais desenvolvidas têm receio de dar um murro na mesa. Nada melhor do que uma vaga de refugiados para obrigar a União Europeia a olhar-se ao espelho. Cerca de quatro anos depois não tiveram tempo para decidir nada? Não venham depois lamentar-se do crescimento das forças políticas populistas, quais cogumelos a crescer em bosques húmidos. Quem tem andado a dar-lhes argumentos?

Pinhal Novo, 2 de Março de 2020
josé manuel rosendo

sexta-feira, 22 de junho de 2018

A Tragédia da desumanização



“Carga humana”, expressão utilizada por Matteo Salvini, Ministro do Interior (e também vice-primeiro-ministro) de Itália, para se referir às 224 pessoas a bordo do barco da “Mission Lifetime”, ONG holandesa, que o Governo de Itália recusou inicialmente receber num porto italiano, mas acabou por aceitar. De caminho, Salvini disse que a “carga humana” teria de ser levada para a Holanda. Matteo Salvini disse ainda que ninguém chama fascista ao vice-primeiro-ministro de Itália. Matteo Salvini é líder da Liga, que já foi Liga do Norte, mas que agora quer ser de toda a Itália e que, juntamente com o Movimento 5 Estrelas, formam o Governo de Itália. Assumem-se como “anti-sistema”, o que não é necessariamente mau porque o “sistema”, de facto, não presta. O pior é que são contra o “sistema” em nome de um “outro sistema” ainda pior. E pior ainda é ver este tipo de gente a ter alguma razão porque há quem decida políticas que acabam por lhes dar argumentos.
As palavras de Salvini em relação a 224 pessoas que “apenas” fogem de cenários de morte e miséria, onde a esperança há muito morreu, é reveladora dos valores que estão a emergir na Europa.
Aquilo que, por facilitismo, designamos por “crise de refugiados”, é para as pessoas em causa uma questão de sobrevivência: arriscam uma travessia num barco manhoso, trazendo as crianças, ou estão condenadas, se não à morte por uma qualquer bala, certamente pela miséria da falta de tudo e da ausência de esperança.
É certo que a Europa (como disse Angela Merkel) não pode acolher toda a miséria do mundo, mas esta Europa que puxa dos galões para falar de valores civilizacionais, não pode pecar pela ausência de resposta. E é disso que se trata: ausência de resposta. Cada um escapa como pode à responsabilidade que devia assumir e que devia exigir que outros também assumissem.
Em 2015, quando as campainhas de alarme soaram – os sinais já eram antigos mas houve quem não quisesse ver – foi o que se viu; depois, veio o acordo com a Turquia – um remendo que deu dinheiro a Erdogan – e o acordo com a Líbia (qual Líbia?) que atirou os refugiados para as mãos dos traficantes e centros de detenção desumanos. É verdade que a chegada de refugiados à Europa foi reduzida, mas a que preço?
Os sinais que chegam de Itália são apenas os mais recentes porque outros sinais muito parecidos já há muito que chegam da Hungria, Áustria, República Checa, Polónia, Eslovénia, Eslováquia... países que se opõem a qualquer ideia de distribuição de refugiados por quotas. O líder húngaro, Viktor Orban, fez aprovar uma lei que transforma em crime qualquer ajuda a refugiados.
São apenas alguns exemplos de uma Europa onde os muros (re) nasceram e envergonham os que se preocupam e defendem os Direitos Humanos. Sim, Direitos Humanos, é disso que estamos a falar.  Em alguns dos países em que os Governos ainda não são totalmente contra a chegada de refugiados é fácil detectar sinais de que a semente está a germinar.
Não devemos ter medo das palavras: há atitudes que tresandam a fascismo! A Europa já viu este “filme”. A Europa já assistiu a momentos em que muitos pensaram que não lhes tocaria em sorte e quando perceberam que não tinham escapatória já era tarde demais. Ninguém pode dizer que não está avisado.
Para o final de Junho está marcado um Conselho Europeu com esta questão na agenda; já este domingo há uma “cimeira” de uma dezena de países europeus (então e os outros?) para discutir a “política migratória”. Curiosamente, o texto do projecto de conclusões refere que “as medidas unilaterais e descoordenadas são menos eficazes, prejudicariam seriamente o processo de integração europeia e o espaço Schengen”.
Nas últimas horas, sem fazer alarde, o Papa Francisco explicou como se pode fazer. Disse que a crise dos refugiados e migrantes exige um maior investimento em regiões como África e o Médio Oriente. Em relação a África (de onde chegam agora o maior número de refugiados), Francisco denunciou a exploração do continente africano (e deve ter irritado algumas capitais europeias) e foi mais directo: “Um plano de investimentos, de educação, para ajudar a crescer, porque o povo africano tem muitas riquezas culturais, grande inteligência, crianças inteligentíssimas. Este será o caminho a médio prazo, mas de momento os governos devem pôr-se de acordo para responder a esta emergência”. 

O Papa pediu “prudência”, por parte dos governos europeus, no acolhimento aos refugiados, para que todos possam ser “integrados”. O que Francisco quis dizer foi: pensem neste problema com a noção de que estão a falar de pessoas, da vida das pessoas. Tão simples quanto isto. E se isto não é política, então não sei o que é. E não precisamos de muitas cimeiras para chegar a estas conclusões.

Precisamos de menos discursos ocos, de menos decisões que nada resolvem a não ser as eleições seguintes. Precisamos de mais governantes com uma noção – apenas uma ligeira noção – de Direitos Humanos. Precisamos de governantes que não se refiram às pessoas como “carga humana”.

Pinhal Novo, 22 de Junho de 2018
josé manuel rosendo

sábado, 13 de maio de 2017

O Papa, para além da Igreja

                                O Papa com refugiados, em Lesbos, Grécia, Abril de 2016

A Fé não é do domínio do racional. Qualquer discussão sobre isso é tempo perdido. A religião implica a aceitação do dogma e uma discussão sobre isso termina sem qualquer conclusão na esfera do racional. A Igreja, nomeadamente a católica, já é outra coisa, e pode e deve ser discutida enquanto instituição de âmbito universal que influencia a vida de milhões de pessoas. Mas não é este o momento para esse debate. Hoje, o importante é sublinhar que há um Papa para além da Igreja, mesmo reconhecendo que essa dimensão apenas é possível porque existe Igreja.

A visita do Papa a Fátima pode ter “mil leituras”, mas o Papa Francisco transporta, principalmente, uma mensagem de Paz. Não é difícil ao cidadão comum aceitar a Paz como um bem maior. Para quem conhece a guerra, a mensagem constante e insistente do Papa Francisco tem um sentido ainda mais profundo. Francisco traz também uma mensagem de combate às desigualdades, contra a indiferença perante os que fogem da guerra e precisam de protecção, pela reconciliação entre diferentes religiões. Francisco foi o homem que levantou a voz a Donald Trump: “Uma pessoa que só pensa em construir muros, seja onde for, em vez de fazer pontes, não é cristão”.

Na Primavera de 2016 acompanhei a visita do Papa à Ilha de Lesbos (Grécia). Francisco estava acompanhado do Arcebispo de Atenas e do Patriarca de Constantinopla. Foi notória a vontade de Francisco contactar, falar e tocar os refugiados, que por essa altura desesperavam na Grécia. Os dois líderes ortodoxos que o acompanhavam mantiveram alguma distância no início mas perceberam que tinham de mudar de atitude. Timidamente lá esboçaram uns sorrisos e dirigiram algumas palavras a quem os aguardava. Francisco abria caminho, parava, falava, apertava as mãos dos que se lhe dirigiam, fazia perguntas. Num momento baixou-se para apanhar e devolver uma garrafa de água que uma mulher deixou escapar na altura em que falava com o Papa. Francisco deixou em Lesbos palavras de encorajamento para os que visitou e de fortes críticas para os responsáveis políticos pela situação dos refugiados.

Foi esse mesmo Francisco que vi esta sexta-feira a descer de um avião na Base Aérea de Monte Real. Embora emparedado num protocolo rígido do programa que lhe prepararam, quebrou esse protocolo, saiu do papamóvel para falar com as pessoas, crianças e velhos, doentes, e ignorou o tapete de flores no acesso à capela da Base Aérea para contactar com os que o aguardavam

Num mundo em crise e em guerra, e mesmo que seja uma ilusão, as pessoas precisam de líderes que as façam sentir pessoas e não números de um qualquer défice ou de uma austeridade assassina, nem instrumentos de interesses económicos ou geoestratégicos, vítimas de guerras e de políticas que, mesmo não usando armas reais usam algumas ainda piores. Francisco deixou um apelo à concórdia entre os povos.

Tal como os portugueses, depois de 10 anos de Cavaco Silva, precisavam de um Presidente como Marcelo Rebelo de Sousa, o mundo precisa de um Papa como Francisco. Não por causa da Igreja Católica, mas porque a palavra de Francisco chega ao mundo inteiro, tem peso, é ouvida, e talvez assuste e/ou faça pensar os líderes que não nos respeitam. Não é possível, depois de Francisco, dizer que não há política nesta mensagem supostamente apenas religiosa. Há, e ainda bem.

Pinhal Novo, 12 de Maio de 2017

José Manuel Rosendo