segunda-feira, 21 de outubro de 2019

Os curdos vão desistir? Claro que não!

Cartaz no Curdistão sírio em que se pode ver o líder do PKK, Abdullah Öcalan ladeado por mártires combatentes, as siglas das unidades curdas da síria (YPG e YPJ) e a frase: "Os nossos mártires são a nossa honra". Neste cartaz a Turquia é classificada como fascista. Fotografia: jmr/Abril 2019


A afirmação em título pode ser arriscada, mas é isso que a História nos diz. É impossível à Turquia, a não ser através de uma ocupação militar, contrária à Lei Internacional, impor uma zona de segurança com 30 quilómetros de profundidade ao longo de todo o norte da Síria (cerca de 480 km). Isso significaria a ocupação de uma enorme para do Curdistão sírio.

Nessa região (Rojava, entenda-se Curdistão Ocidental) que faz fronteira com a Turquia, desde o Verão de 2012 que o Partido da União Democrática (PYD), força política dominante entre os curdos da Síria, tenta criar instituições que construam a autonomia que os curdos desejam. Para isso foram criados três cantões (Afrin, Kobani e Jazira) e o sistema político de governação assenta numa democracia de base (quase democracia popular), inclusivo em relação a minorias e que tem como grande bandeira (aliás explorada à exaustão em muitas reportagens) a paridade entre homens e mulheres. As Unidades de Protecção Populares (braço armado do PYD) têm grupos de combate masculinos (YPG) e femininos (YPJ) lutando sob a mesma bandeira, sendo que a única diferença é a cor em que assenta a estrela vermelha e a sigla “YPG”: a dos homens é amarela, a das mulheres é verde.

Esta tentativa de construção de autonomia dos curdos da Síria passou muito despercebida porque as atenções estavam centradas na guerra civil na Síria e, depois, no combate ao Estado Islâmico (EI). Só quando a guerra em Kobani saltou para o topo das notícias, os curdos da Síria ganharam visibilidade, muito à custa da luta aguerrida que travaram e dos mártires que encheram os cemitérios.

Diga-se que o combate ao EI foi feito com o apoio aéreo da Coligação Internacional liderada pelos Estados Unidos, mas a derrota do EI e o recuo a que foi forçado, dificilmente teria sido conseguido sem as forças curdas com “botas no terreno”. A Turquia, do outro lado da fronteira (Kobani é em cima da linha de fronteira) “não mexeu uma palha” nesse combate aos fundamentalistas, tendo apenas autorizado a passagem de Peshmerga (forças militares dos curdos iraquianos) que foram em auxílio dos curdos da Síria. Aliás, basta recuar a fita do tempo para nos lembrarmos da relutância da Turquia em deixar entrar os sírios que fugiam do avanço do EI.

Neste contexto, é preciso entender o que está em jogo no Curdistão Sírio. Temos os curdos da Síria, que acabam de fazer um acordo com o Governo de Bashar Al Assad, para combaterem a invasão turca. Os curdos e Al Assad (quase) nunca se combateram desde que começou a guerra na Síria, sendo que as forças do governo foram obrigadas a retirar do norte do país devido a derrotas consecutivas na luta contra o então Exército Livre da Síria (que agora passou a Exército Nacional Sírio e é aliado da Turquia na invasão em curso) e também contra as milícias de génese religiosa, e mais tarde contra o EI. Al Assad esteve sempre a recuar até que o apoio da Rússia virou o destino da guerra mas, mesmo com o domínio curdo na região norte, as forças governamentais sempre mantiveram presença militar em pelo menos Qamishli (onde Al Assad tem uma base aérea) e Hassaqé. Temos depois a Turquia, que vê nos curdos (PYD e YPG) uma emanação do PKK (Partido dos Trabalhadores do Curdistão), com o qual mantém uma guerra no sudeste do país há mais de 30 anos. A Turquia tem razão neste aspecto porque os próprios curdos assumem essa ligação (até a bandeira das YPG tem a mesma estrela da bandeira do PKK), mas também não se pode esquecer que o próprio PKK enviou forças para combater o Estado Islâmico, nas montanhas de Sinjar (a montanha dos Yazidi) e na zona leste do Curdistão Sírio. A razão turca não chega para chamar terroristas às YPG. É aliás um absurdo a que apenas se pode fechar os olhos devido a um excessivo cuidado diplomático em não querer ofender o Presidente turco.
Os Estados Unidos fazem a dança do costume e descartam aliados como quem muda de camisa. Assumindo a ligação aos curdos da Síria na fase da luta contra o EI, batem em retirada depois de acertarem com a Turquia a invasão que está a decorrer, querendo surgir depois como arquitectos da trégua, ameaçando a Turquia com sanções e com Donald Trump a dizer que a guerra entre curdos e turcos é muito longe de casa e não é do interesse dos Estados Unidos.
A Rússia vai mediar e, a par com o Irão, terá muito mais possibilidades de evitar um confronto directo entre as forças militares sírias e turcas, porque vai chegar o momento em que muito provavelmente vão estar “frente a frente”. É a última coisa que a Kremlin pretende é ver dois países amigos a digladiarem-se.

Esta ofensiva turca no norte da Síria é a prova, se tal fosse necessário, de que o Conselho de Segurança das Nações Unidas está bloqueado e fica à vista de qualquer Estado com ambições expansionistas ou de guerrear um Estado vizinho, que basta ter capacidade militar para tal. A chamada “comunidade internacional” não vai passar das declarações desgarradas de condenação do acto. O Direito Internacional foi mais uma vez enviado às urtigas, e não será a última, porque o que está a acontecer é a violação clara da soberania de um Estado, por outro Estado.

Mas para além de todos estes considerandos sobre os protagonistas, há um aspecto que não deve ser negligenciado: há décadas que os curdos lutam pela autodeterminação, principalmente na Turquia e no Iraque. Os sucessivos governos turcos não os conseguiram derrotar, apesar do líder do PKK estar preso há cerca de 20 anos; no Iraque, nem Saddam Husseín conseguiu, mesmo depois dos massacres com que tentou conter as ambições curdas; na Síria os curdos, também tratados como cidadãos de “segunda ou terceira” pela família Assad, até a nacionalidade síria viram recusada. O PKK é bombardeado há anos até nas bases que mantém no Curdistão iraquiano.

O Curdistão, nos diferentes países por onde está dividido, tem diversas tonalidades políticas (algumas até muito divergentes) e diferentes formas de organização, mas há um sentimento que une os curdos: o direito ao Curdistão. Quem já andou pelas montanhas do Curdistão sabe que os curdos as conhecem como ninguém e é o ventre dessas montanhas que alberga o espírito da autonomia curda. Não há bola de cristal que nos mostre o caminho que a História vai seguir, mas quem quiser derrotar os curdos, talvez só tenha dois caminhos possíveis: assume um genocídio ou arrasa todas as montanhas da região. Se assim não for, os curdos vão resistir.

Pinhal Novo, 21 de Outubro de 2019
josé manuel rosendo


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