Em Abril de 2019, os curdos ainda contavam os mortos da luta contra o Estado Islâmico. Agora enfrentam uma nova guerra. Foto: jmr, Raqqa, Abril 2019 |
Não
há surpresa nenhuma com o que está a acontecer no Curdistão sírio. Os
cemitérios curdos estão cheios de combatentes que deram a vida no combate
contra o Estado Islâmico e os curdos não deixariam de apresentar essa “factura”.
Ali ao lado, no Iraque, fizeram um referendo que foi esmagador no resultado pró-independência;
a independência não avançou mas o Governo regional saiu politicamente reforçado
nas reivindicações perante o Governo Central de Bagdad; na Síria, depois do
quase colapso do regime de Bashar Al Assad, os partidos políticos curdos iniciaram
um processo de auto-governação, estando no entanto muito longe da autonomia que
os curdos iraquianos já conseguiram e que, aliás, está vertida na Constituição
iraquiana, o que não acontece no caso da Síria. Se essa tentativa de
auto-governação avançou logo em 2011, os curdos sentiram ainda mais
legitimidade depois de terem “oferecido o peito às balas” do Estado Islâmico.
Colocar-se-á
a questão de saber se as YPG (Unidades de Protecção Popular, braço armado dos
curdos sírios, que integram as Forças Democráticas da Síria juntamente com
tribos árabes) têm ligação ao PKK (Partido dos Trabalhadores do Curdistão, acusado
de terrorismo), que nasceu na Turquia para lutar pela causa curda perante um
poder turco que, ao tempo, nem a palavra Curdistão admitia. É evidente que há
ligações como será natural esperar entre curdos, independentemente da
nacionalidade que ostentam no cartão de identidade (diga-se que na Síria essa
nacionalidade – síria – lhes foi durante muitos anos recusada). Como também
será bom não esquecer que o próprio PKK combateu o Estado Islâmico e teve papel
importante nos combates em Sinjar, a montanha dos Yazidi. No Curdistão, no
Iraque ou na Síria, não é difícil encontrar na parede das casas a fotografia de
Abdullah Öcalan, líder do PKK, preso há duas décadas.
É
esta afirmação dos curdos (em duas realidades substancialmente diferentes), no
Iraque primeiro, e agora na Síria, que preocupa o Presidente da Turquia, Recep
Tayyip Erdogan. Ele sabe, pensa, que a afirmação destas duas comunidades será
um incentivo para a comunidade de curdos na Turquia, que é aliás a maior entre os
quatro países por onde os curdos estão dispersos (Turquia, Iraque, Síria e Irão).
Na
Turquia, tudo o “que mexe” do lado curdo, seja ou não dentro da legalidade, e até
deputados eleitos dos partidos curdos, desde que Erdogan se sinta incomodado, é
certo que vai parar à prisão.
Não
é por acaso que a Turquia, no início de 2018, lançou uma ofensiva militar na
região de Afrin (um dos três cantões curdos no norte da Síria) que acabou com
as tropas turcas a controlarem a região e metade da população de Afrin em fuga.
Agora, com o argumento da criação de uma “zona de segurança” com uma
profundidade de 32 quilómetros ao longo da fronteira Turco-Síria, a Turquia (com
o apoio do antigo Exército Livre da Síria – oposição a Assad) pretende fazer o
mesmo nos outros dois cantões curdos (Kobani e Jazeera) e ficar assim com toda
a fronteira controlada.
Aliás,
esta operação está a ser preparada há muito tempo por Donald Trump e Recep
Tayyip Erdogan: em Dezembro de 2018, Trump ordenou a retirada das forças
norte-americanas, dizendo depois que ficariam cerca de 400 militares; em
Janeiro de 2019 começou a falar-se de uma “zona de segurança” no norte da
Síria; em Agosto, Estados Unidos e Turquia decidiram criar um centro de
operações conjunto para coordenar a criação dessa “zona de segurança” e, agora,
a 6 de Outubro, Donald Trump mandou retirar os militares norte-americanos que
estavam nos pontos de passagem da invasão que está em curso. É por isso que não
colhe quando Donald Trump diz que não deu luz-verde à Turquia.
Perante
tudo isto, os curdos, que já “serviram” o Ocidente ao combaterem o Estado
Islâmico, estão agora – mesmo que involuntariamente – a “servir” o Governo de
Bashar Al Assad, combatendo a invasão turca. Os laços entre Curdos e Bashar Al Assad
nunca foram totalmente cortados durante os 12 anos de guerra na Síria e não
será de estranhar que uma das opções em cima da mesa do estado-maior curdo seja
uma aliança com as forças de Bashar Al Assad para combater a invasão turca. Falta
saber o que dirão a Rússia e o Irão, também aliados de Bashar Al Assad, mas nem
por isso inimigos de Erdogan.
A
geopolítica do Médio Oriente é complicada, mas explica-se de uma forma simples
(ironia): imagine o leitor um tabuleiro de xadrez; imagine depois que para além
dos habituais conjuntos de peças pretas e brancas, estão no mesmo tabuleiro
outros conjuntos de peças verdes, amarelas, vermelhas e de outras cores;
imagine também que em vez dos habituais dois jogadores tem vários pares de mãos
a movimentarem todas essas peças e, por fim, junte a estes ingredientes a
ausência de regras para a movimentação das diferentes peças. É fácil e toda a
gente percebe. Obviamente que, de vez em quando, alguém vira o tabuleiro de
pernas para o ar.
Pinhal
Novo, 13 de Outubro de 2019
josé
manuel rosendo
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