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quarta-feira, 30 de agosto de 2017

Europa à procura de um novo Kadhafi


Não vão longe os tempos em que a Europa via em Mohamar Kadhafi uma espécie de seguro que mantinha muitos milhares de deserdados longe do território europeu. O ditador líbio negociava benesses com a Europa e era recebido nas capitais europeias a troco de negócios de petróleo e porque, através do controlo que exercia nas tribos do sul da Líbia, controlava as fronteiras porosas por onde muitos africanos tentavam passar para chegarem ao Mediterrâneo. Certamente nos recordamos das ameaças de Kadhafi, ainda no poder, em Março de 2011: milhares de pessoas vão invadir a Europa e não haverá ninguém para detê-las. Kadhafi, morreu, a Líbia está mergulhada no caos, refugiados e migrantes africanos tentam chegar ao Mediterrâneo atravessando o país, sendo vítimas também de traficantes de seres humanos e das próprias milícias que combatem na Líbia. É este o cenário.

Os que sobrevivem até entrarem numa barcaça na costa líbia e conseguem depois atravessar o Mediterrâneo, são o problema que o Presidente francês se propôs resolver numa mini cimeira, em Paris, que juntou a Chanceler alemã, o Primeiro-ministro italiano, o Presidente do governo espanhol, os Presidentes do Níger e do Chade, e o líder do Governo de Unidade Nacional da Líbia. A Alta Representante da União Europeia para a Política Externa e Segurança também esteve presente.

Aqui chegados, é preciso confessar que, quando se fala de Europa, ninguém sabe ao certo do que se está realmente a falar. Principalmente quando se fala de política externa do velho Continente. A cada passo fica mais evidente que a União Europeia não tem uma Política Externa (assim, com maiúsculas…). E desta vez, a evidência chegou de Paris, na já referida cimeira. O objectivo de Emmanuel Macron é encontrar uma panaceia que controle a chegada de refugiados e migrantes a território europeu. Nos planos de Macron, Níger e Chad devem fazer o que a Líbia de Mohammar Kadhafi fazia: travar os africanos que pretendiam atravessar o Mediterrâneo com destino à Europa, servindo de tampão aos que fogem da guerra, da fome, da miséria económica e da completa inexistência de uma perspectiva de futuro. Na perspectiva de Macron e, ao que parece, dos que com ele se sentaram à mesa no Palácio do Eliseu, quanto mais longe essa gente for mantida, melhor para a Europa.

Nesta mini cimeira ficou decidido que Níger e Chad vão ser palco de zonas (campos) onde se vão juntar os refugiados vindos de outros países africanos. Depois, compete às Nações Unidas avaliar, nesses campos, os que merecem o estatuto de requerentes de asilo. Esses terão um bilhete (de avião?) para território europeu.

Escreve a Deutsche Welle que o plano que saiu da mini cimeira também “defende a preservação da segurança dos países africanos para reduzir o número dos que se aventuram na travessia do Mediterrâneo”. Descodificando: defende que os actuais governantes se mantenham no poder.

O Níger e o Chade são dois países do Sahel (a faixa de território que atravessa o Continente e separa a África do deserto – Sahara - e a África mais fértil) que vivem em conflito desde há décadas e onde algumas potências europeias têm interesses a defender. O Chade é um dos países mais pobres e um dos mais corruptos em todo o mundo. Tornou-se independente da França em 1960. Idriss Déby é o Presidente desde 1990 depois de um golpe de Estado para o qual, segundo a BBC, contou com a ajuda dos serviços secretos franceses. Depois foi ficando e alterou a Constituição para poder recandidatar-se indefinidamente. Neste momento o Chade já acolhe cerca de 400.000 refugiados-

O Níger, depois da independência (da França) em 1960, viveu tempos atribulados. Mahammadou Issoufou é o Presidente desde 2011, reeleito em 2016 numas eleições boicotadas pelo principal opositor, que foi preso. O Níger acolhe actualmente mais de 300.000 refugiados.

Estes dois países são pobres, mas ricos em recursos naturais que vão do ouro ao urânio. As populações são pobres e sobrevivem principalmente da agricultura de subsistência. Os níveis de analfabetismo são enormes. Os dois países são zonas de acção para o Boko Haram (apesar do grupo não ter base no Níger). Níger e Chade estão no coração de África, zona estratégica para quem quer ser influente.

Há quase 10 anos, numa entrevista ao Público, a advogada Delphine Djiriabe, activista dos Direitos Humanos no Chade dizia que “a Europa tem de intervir no Chade enquanto UE e não sustentar as posições da França. Temos a impressão de que a Europa promove a posição francesa. Pensamos que a Europa deve adoptar a sua própria posição”. A Europa não leu esta entrevista feita na sequência da alteração Constitucional que permitiu ao actual Presidente manter-se no poder, após um conflito em que foi apoiado pela França.

OPINIÕES (registadas pela Antena 1)
Desta mini cimeira em Paris, resultam decisões que provocam muitas dúvidas e aconselham muita prudência. Carlos Coelho, eurodeputado do PSD, considera que é positivo tudo o que seja feito para evitar mortes no Mediterrâneo e combater o tráfico de seres humanos, mas levanta três questões: é uma solução para ser, de facto, aplicada?; toda a UE vai ser envolvida ou apenas os países que estiveram representados em Paris?; pretende-se uma resposta às pessoas que precisam de ajuda ou é apenas uma forma de as empurrar para fora da Europa? Carlos Coelho lembrou que não há nenhuma condição, no curto prazo, para ultrapassar as razões que levam as pessoas a fugir. E a Europa está a ser lenta na resposta.

Raúl Braga Pires, investigador da Academia Militar e especialista em questões do Sahel diz que duvida da capacidade da ONU para fazer o trabalho de avaliação das pessoas que pretendem chegar à Europa e acrescenta que a iniciativa francesa pretende recuperar o terreno perdido para os Estados Unidos quanto à influência externa na região. Os norte-americanos ainda não decidiram onde vão colocar a sua grande base militar em África e, por isso, França quer marcar território.

Pedro Góis, do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, estudioso das migrações, chama a atenção para as ausências (Senegal e Nigéria – países de origem de muitos refugiados e migrantes) na mini cimeira de Paris e considera que o objectivo é mudar a fronteira externa da União Europeia: “é uma proposta de projectar a fronteira externa da UE para mais a sul de modo a trabalharmos com a ideia de que a primeira fronteira para acesso à Europa já não são as fronteiras europeias, já não é o sul do Mediterrâneo, é já o sul do Sahara, isto na ambição da França enquanto estratégia defensiva contra as migrações”. Pedro Góis acrescenta que a iniciativa, com o patrocínio do Presidente francês, “projecta para o interior de França a ideia de que os terroristas e os migrantes são o mesmo corpo de pessoas, o que não é de todo verdade porque, como sabemos, muitos dos terroristas que têm sido indiciados na Europa são cidadãos europeus ou vivem cá há muitos anos”.

A juntar a tudo isto, sublinhe-se o apelo lançado ontem por António Guterres para que a Líbia liberte imediatamente os refugiados e migrantes detidos. O Secretário-geral da ONU faz uma referência explícita à “violência extrema dos traficantes, dos passadores, dos membros dos grupos armados e das forças de segurança”, de que refugiados e migrantes estão a ser vítimas na Líbia. Estima-se que estejam detidos em centros “oficiais” entre 7.000 e 8.000 pessoas, não se sabendo quantas mais estão detidas em centros controlados pelas milícias.

Este ano, segundo a Organização Internacional das Migrações, cerca de 120.000 refugiados entraram na Europa. Cerca de 2.400 morreram no Mediterrâneo.
A chefe da diplomacia europeia disse em Paris que o problema é a pobreza (nos países africanos) mas acrescentou que não há necessidade de inventar um novo Plano Marshall (plano dos Estados Unidos para ajudar à recuperação da Europa depois da II Guerra Mundial) porque a União Europeia já investe anualmente 20 mil milhões de euros no continente africano.

Para além da indefinição da União Europeia enquanto entidade que representa 28 Estados, convém dizer que o Reino Unido já “corre por fora”. O Ministro dos Negócios Estrangeiros, Boris Johnson, esteve de visita à Líbia. Foi a Tripoli, a Misrata e a Benghazi, onde se encontrou com Khalifa Haftar (antigo companheiro de Kadhafi e depois exilado nos Estados Unidos), o marechal que controla uma boa parte do país embora não seja reconhecido no acordo mediado pela ONU que deu origem a um Governo de unidade nacional. Para o Reino Unido nada disso parece interessar e Boris Johnson disse que o marechal Haftar tem uma palavra a dizer no complicado processo político líbio. 

É este o cenário. Cada Europa tem o Kadhafi que merece.

Pinhal Novo, 30 de Agosto de 2017

josé manuel rosendo

segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

Guerra do petróleo na Líbia: quem vende e quem compra?


                                    O mapa dos oleodutos e gasodutos é da insuspeita Stratfor 
                                    (empresa norte-americana frequentemente referida como 
                                     uma espécie de CIA privada que recolhe informação de 
                                      relevância geopolítica).

A Líbia não conseguiu fugir à chamada “maldição dos recursos”. Tem petróleo, e ter petróleo, em África (mas não só), paradoxalmente, tem sido sinónimo de guerra. Na Líbia, os frutos da chamada Primavera Árabe revelaram-se venenosos. Enquanto vão falhando as sucessivas tentativas de reconciliação, a Líbia vive mergulhada numa guerra que já transformou o país num Estado falhado onde existem dois governos, dois parlamentos, um vasto conjunto de grupos armados entre os quais se atravessa o Estado Islâmico, sendo também o país preferido para os africanos que querem chegar à Europa e arriscam uma travessia do Mediterrâneo. Perante este cenário, o que tem feito a chamada comunidade internacional? Bem… as Nações Unidas tentam a reconciliação nacional através de uma divisão dos benefícios do petróleo entre as várias facções combatentes. Até agora não resultou.

Aparentemente sem qualquer sentido de Estado, os dois governos apenas tentam manter o pouco poder que têm vendendo o petróleo produzido nas áreas que cada um deles controla (em Tobruk, o governo reconhecido internacionalmente; em Tripoli o outro governo). Ainda assim, o Ministro dos Negócios Estrangeiros do governo de Tobruk advertiu recentemente para o perigo de a Líbia vir a tornar-se no novo santuário do Estado islâmico. Ajdabya, local de intensos combates quando Kadhafi ainda era vivo, é apontada como possível nova capital do estado islâmico. O Ministro líbio disse que não é possível pensar numa reconciliação nacional sem antes passar à acção militar. O aviso está feito: o Estado Islâmico está a ganhar força e a ligação ao Boko Haram, na Nigéria, dá fortes sinais. Entre a Líbia e a Nigéria, na região do Sahel, há apenas dois países: Níger e Chade, ambos mergulhados em conflitos semelhantes, territórios por onde tudo pode passar.

Enquanto este cenário se desenvolve bem à vista de todos a inacção talvez possa ser explicada com o petróleo que vendido através dos portos líbios. Dificilmente estará a sair de outra forma (ver imagem). E também não será difícil saber quem está a comprar. Tal como no Iraque não é difícil seguir a rota dos camiões que contrabandeiam petróleo, na Líbia também não será difícil saber que navios saem dos portos, carregados de crude, e para onde vão. Aliás, neste momento, o Mar Mediterrâneo está mais do que militarizado. O problema é que as grandes empresas ocidentais sempre gostaram de recursos baratos. Segundo dados conhecidos, a Líbia é o país africano com maiores reservas de petróleo – mais de 48 mil milhões de barris em finais de 2014 – e embora tendo a produção afectada pela situação de guerra – produz actualmente cerca de 500 mil barris diários, quando no tempo de Kadhafi produzia o triplo – é ainda um produtor apetecível. Melhor ainda se o contrabando obrigar a reduzir os preços.

Não sou dos que partilham a ideia de que Kadhafi devia ter ficado tranquilo no poder para que a Líbia ficasse em sossego, nem sou dos que partilham a ideia de que as forças de Kadhafi não deviam ter sido atacadas quando já estavam às portas de Benghazi. De facto, os líbios tinham todo o direito de quererem ver-se livres de um ditador macabro (uma visita às prisões do regime seria bom para aqueles que ainda ousam defendê-lo) e quando dizem que os países ocidentais não deviam ter interferido na “primavera líbia”, talvez tenham alguma razão, mas não têm a razão toda. Devem recordar-se das imagens de um Kadhafi possesso de ódio contra os rebeldes a prometer um “zenga zenga” (uma caça casa a casa, rua a rua…) e esteve quase a consegui-lo. O tanque que liderava a coluna que queria reconquistar Benghazi ficou a dois ou três quilómetros da entrada da cidade, se não estou em erro em Março de 2011. Kadhafi tinha prometido amnistia para quem se rendesse, mas disse que não haveria compaixão nem misericórdia para quem ousasse lutar. Se as forças de Kadhafi tivessem entrado ninguém duvida do massacre que se teria seguido.

Enquanto todas as atenções estão centradas no Iraque e na Síria, não é difícil imaginar as negociatas feitas com o petróleo da Líbia. Evidentemente que alguém na Líbia está a ganhar muito dinheiro, mas não é menos certo que alguém fora da Líbia está igualmente a ganhar muito dinheiro. E se, em relação aos líbios, o preconceito habitual faz com que se olhe para eles como “os bandidos do costume” (assim do tipo aquela gente que anda sempre aos tiros…), em relação ao mundo (dos negócios) de gente que não dá um tiro e surge sempre bem engravatada, seria bom sabermos quem são.

Pinhal Novo, 14 de Dezembro de 2015

josé manuel rosendo