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sexta-feira, 28 de dezembro de 2018

A lição que nos chega do Iémen




A grande lição que podemos recolher do Yémen está na parte final deste escrito, mas antes de lá chegarmos é importante algum contexto.

A guerra devasta o Iémen há mais de quatro anos. A contagem de mortos da Organização das Nações Unidas (ONU) apontava, em 2016, para cerca de 10 mil mortos. Daí para cá não se sabe quantas pessoas morreram. Mas sabemos, porque a ONU nos diz, que cerca de 20 milhões de pessoas vivem uma terrível insegurança alimentar, dependentes da ajuda que lhes chega. Os Médicos Sem Fronteiras dizem que houve um colapso total do sistema de saúde e também da economia do país. As doenças têm porta escancarada devido aos problemas sanitários. A tragédia é já apontada como a pior crise humanitária do século XXI e talvez por isso, por tudo isso ser uma vergonha, as partes directamente envolvidas sentaram-se à mesa e resolveram dar um sinal de que talvez seja possível reduzir o sofrimento de milhões de pessoas.

A 18 de Dezembro, na Suécia, houve um aperto de mão entre rebeldes Houthis e representantes do Governo Iemenita, e foi assinado um acordo para uma trégua. É coisa pouca, face à dimensão do problema, mas é alguma coisa. Esse acordo estabelece um cessar-fogo na cidade (e no porto) de Hodeida; foi dado um prazo de três semanas para reposicionamento de forças militares no exterior da cidade; as taxas portuárias de Hodeida vão ser transferidas para o Banco central de modo a que seja possível pagar salários aos funcionários públicos. Desde que o acordo foi assinado, é certo que as armas não ficaram em silêncio, mas sentar inimigos à mesa é sempre um passo obrigatório para chegar a algum resultado. Aliás, enquanto decorriam as negociações, os combates continuaram, mas o acordo foi assinado e o Conselho de Segurança da ONU já aprovou o envio de observadores para o terreno (para Hodeida e outros dois portos).

Paralelamente, em Marrocos, a 11 de Dezembro, foi aprovado o Pacto Global para as Migrações, no âmbito das Nações Unidas. Apenas 165 dos 193 países assinaram o documento. Posteriormente, a Assembleia Geral da ONU ratificou o documento: 152 países votaram a favor, 12 abstiveram-se e cinco votaram contra (Estados Unidos, Israel, Hungria, República Checa e Polónia). Durante as negociações, outros países europeus anunciaram que não assinavam o Pacto.
Este documento não é um Tratado. Estabelece princípios e é sobretudo um compromisso em defesa dos Direitos Humanos. Países como a Áustria, Chile, Brasil, Austrália, entre outros, ficaram de fora, dando ouvidos a Donald Trump. O governo belga caiu porque a coligação desfez-se depois de o Primeiro Ministro Charles Michel ter assinado o Pacto, algo que os Nacionalistas Flamengos não conseguiram suportar.

Esta recusa de alguns governantes de tentar resolver em conjunto um problema que é de todos, deixa-nos a pensar sobre o que vai na cabeça dos políticos destes países. Ao mesmo tempo chega-nos a notícia de que em 2018, estima-se que 150 mil refugiados tenham chegado ao Iémen. Sim, ao Iémen. É um aumento de 50% em relação a 2017.

Esta informação passou “ao lado” – pelo menos não dei por ela em Portugal – mas foi divulgada pela Organização Internacional para as Migrações (OIM - liderada por António Vitorino). Haverá quem se interrogue: como é possível que alguém tente obter refúgio, nem que seja provisório, num país em guerra? Como é possível que um país em guerra esteja de portas abertas para 150 mil pessoas quando a própria população não tem o que comer?
A OIM acrescentou que 20% destes refugiados são menores e a maioria viajam sozinhos; 92% destas 150 mil pessoas são oriundos da Etiópia e da Somália.

A OIM chama a atenção para este fluxo de refugiados que diz ser superior a outros fluxos e, em particular, à previsão de travessias no Mediterrâneo. O Iémen é apenas uma etapa nesta rota de refugiados que parte de vários pontos de África até ao Djibouti, para depois atravessar o Golfo de Aden até ao Iémen, e daí tentar chegar a outros países do Golfo. A OIM contabilizou 156 mortes nesta travessia – muito menos do que as cerca de duas mil mortes no Mediterrâneo, em 2018, mas a própria OIM disse que 156 mortos é um número longe da realidade.

Estes refugiados entram num país em guerra, atravessam campos minados e certamente alguns não conseguirão continuar viagem. É verdade que os que chegam ao Iémen não pretendem ficar no país, mas não é menos verdade que não encontram arame farpado nem são detidos ou reenviados para o ponto de partida. Talvez o caos no Iémen faça dos refugiados uma questão não prioritária, mas não deixa de ser assinalável que, quem quase nada tem, não levante obstáculos à chegada (ou passagem) de refugiados, enquanto aqueles que mais têm fecham fronteiras e constroem muros, travando a marcha de esperança de milhares de pessoas, condenando-as à morte no Mediterrâneo ou amachucando-lhes a dignidade em campos de refugiados sustentados com os fartos orçamentos dos países mais ricos.

O Director do Programa Alimentar Mundial, David Beasley, disse que o Iémen não é um país à beira da catástrofe, o Iémen já está em situação de catástrofe; o secretário-geral adjunto da ONU para os assuntos humanitários, Mark Lowcock, disse que o Iémen será o país com o maior problema em 2019.

Deste conjunto de factos, parece-me sensato retirar uma lição com base nas atitudes de quem acolhe e de quem é acolhido: o povo do Iémen não fecha as portas a quem o procura – talvez porque saiba bem o que é a guerra e a fome; os refugiados que procuram o Iémen não receiam entrar num país em guerra desde que esse passo seja o único que lhes dá alguma esperança numa vida melhor. Quem não entender o desespero de pessoas que se sujeitam a entrar num país em guerra para tentar encontrar um caminho de futuro, não entende nada.

Pinhal Novo, 28 de Dezembro de 2018
josé manuel rosendo

quarta-feira, 21 de setembro de 2016

António Guterres arrisca-se a ser o último Secretário-Geral da ONU


O Mundo atravessa um momento complicado. É comum tendermos a valorizar as dificuldades do presente esquecendo que outros momentos semelhantes já aconteceram e nem todos terminaram da forma dramática que, em determinado passo, foi previsto. Mas também é verdade que muitos analistas admitem estarmos a caminho de mais uma guerra mundial. Não se trata de pessimismo ou cedência às teorias deterministas. A escolha é dos homens, mas há muitos homens que não conseguem aprender nada com a história.

A guerra na Síria é um exemplo. As grandes potências e as potências regionais estão envolvidas; há actores locais fortemente empenhados; os povos estão desavindos; fronteiras questionadas; a religião utilizada como arma. Já lá vão mais de cinco anos de guerra e não há sinal de que os protagonistas cedam à necessidade óbvia de um acordo político. Como alguém já disse, até parece que toda a geopolítica do planeta está centrada na Síria. As Nações Unidas, herdeiras de uma Ordem Internacional criada há 70 anos, revelam total incapacidade para conter o conflito e para ser o tal fórum onde as desavenças se resolvem de forma civilizada. Aliás, a guerra na Síria e no Iraque, contém um dado poucas vezes abordado: o objectivo do Estado Islâmico é também o de contestar o próprio modelo de Estado-Nação, defendendo outro tipo de fronteiras.

Esta incapacidade das Nações Unidas que pode levar à sua irrelevância transporta-nos ao tempo da Sociedade das Nações, antecessora da ONU. Não deixa de ser curioso que tendo nascido de uma sugestão de um presidente norte-americano, o Congresso dos Estados Unidos tenha recusado ratificar o Tratado de Versalhes (onde constava a criação da Sociedade das Nações) e os Estados Unidos ficaram de fora. Criada após a I Guerra Mundial, a Sociedade das Nações acabaria por sucumbir precisamente por não ter conseguido o seu principal objectivo: manter a paz! O nazismo terá sido o principal impulsionador, mas muitos outros sinais de ambições territoriais já antes se tinham manifestado.

Um desses sinais veio da Etiópia e o aviso foi muito claro. Aliás, há um discurso que muitos diplomatas e analistas deviam rever, por todo o seu esplendor, pelo tom arrebatado, pela clarividência e, principalmente, por ser uma ode ao multilateralismo, tão em voga no nosso tempo mas que se resume sempre, e infelizmente, ao poder de meia dúzia de nações. Passam precisamente 80 anos sobre o momento em que o Imperador da Etiópia, Hayle Selassie, foi a Genebra dizer aos 52 países da Sociedade das Nações que os Tratados Internacionais não estavam a ser cumpridos e, pior do que isso, a Sociedade das Nações estava a olhar para o lado.

Depois de relatar em pormenor que as tropas italianas estavam a fazer na Etiópia (invasão) e o embargo a que a Etiópia estava sujeita e que não lhe permitia defender-se da ameaça de extermínio, o Imperador Hayle Selassie disse: “Os apelos que os meus delegados em Genebra dirigiram à Sociedade das Nações ficaram sem resposta; os meus delegados não testemunharam os factos; é por isso que resolvi vir eu próprio dar testemunho do crime perpetrado contra o meu povo e advertir a Europa do perigo que a espera se decidir vergar-se perante um facto consumado”. Era muito claro o aviso: hoje a Etiópia, amanhã poderá ser um de vós. 

A Sociedade das Nações protestou, mas a Itália de Mussolini passou impune. A Etiópia ficou entregue a si própria e à voracidade de uma Itália liderada por “Sua Excelência Benito Mussolini, Chefe de Governo, Duce do Fascismo e Fundador do Império”, como o próprio ditador se intitulava. Hayle Selassie foi certeiro na análise e a história acabou a dar-lhe razão. Os italianos utilizaram armas químicas e há relatos que referem meio milhão de mortos entre os etíopes. A II Guerra Mundial não tardou a bater à porta.

Aqui chegados, neste nosso tempo, temos António Guterres a subir a escada que o pode levar a Secretário-Geral da ONU. Não duvido das boas intenções do ex-Primeiro-Ministro português, mas esta ONU, da qual já se disse mil vezes precisar de uma reforma que lhe permita uma intervenção mais eficaz, não está a ser a instituição que o Mundo precisa para suster conflitos e regular divergências internacionais. 

Quem mais precisa de uma ONU forte são os mais fracos, povos e países, mas esta ONU está cada vez mais alinhada com as grandes potências. Não que isso seja uma vontade assumida dos 193 Estados membros, mas é o resultado de uma organização que já não corresponde (se é que alguma vez correspondeu) à relação de forças a nível internacional e mantém um Conselho de Segurança com regras que conduzem facilmente à inacção.

A história não se repete mas ao recusar ouvir os alertas semelhantes aos de Hayle Selassie, a ONU arrisca-se a ter o mesmo fim da Sociedade das Nações e António Guterres pode vir a ser o homem com a ingrata tarefa de fechar a porta. Esperemos que não.

Pinhal Novo, 21 de Setembro de 2016

josé manuel rosendo