terça-feira, 29 de janeiro de 2019

Morreu o Príncipe dos Yazidi




Tahsin Saïd Ali Beg, tinha 85 anos, morreu num hospital de Hanover, Alemanha, segundo anunciaram familiares citados por órgãos de comunicação curdos. O Príncipe dos Yazidi, de seu nome completo Tahsin Saïd Beg Ali Beg Husseín Beg, tinha sido hospitalizado na semana passada e há muito que estava doente.

O Príncipe nasceu a 15 de Agosto de 1933, em Ba’adra, cidade no norte do Iraque na zona disputada por árabes e curdos, próximo de Duhok. Foi escolhido para líder da comunidade Yazid quando tinha apenas 11 anos de idade, após a morte do pai. Em 1970 Tahsin juntou-se à revolução curda contra o Governo iraquiano, depois de já ter conhecido a prisão. Em 1975 emigrou para o Reino Unido, tendo regressado ao Iraque em 1981. Depois desse regresso, diz a televisão curda Rudaw, sobreviveu a duas tentativas de assassínio em 1992 e 2003.
O deputado yazidi no Parlamento iraquiano, Vian Dakhil, não adianta uma data para as cerimónias fúnebres mas é citado em vários órgãos de informação dizendo que o Príncipe Yazidi será sepultado nos próximos dias no Curdistão iraquiano. A mesma fonte disse à Agência France Press que antes de morrer o Príncipe Thasin nomeou o filho, Hazem, para lhe suceder na liderança da comunidade.

A yazidi Prémio Nobel da Paz, Nadia Murad, descreveu Tahsin Saïd Ali Beg como um líder sábio que acreditava profundamente na paz e que liderou a comunidade em tempos muito difíceis.

Nechirvan Barzani, líder do governo regional do Curdistão, apressou-se a enviar condolências à família e a toda a comunidade Yazidi, referindo-se ao líder morto como um homem que sempre defendeu a coexistência pacífica entre as várias comunidades no Iraque e na região do Curdistão. Rapidamente as redes sociais foram palco para a crítica a estas palavras lembrando que o Governo do Curdistão Iraquiano pouco fez para ajudar os Yazidi quando foram perseguidos pelo Estado Islâmico e acrescentando que os Yazidi deviam sentir vergonha ao ouvirem as palavras do Primeiro-ministro do governo regional do Curdistão.

Não existem números rigorosos e credíveis para que se saiba quantos são os Yazidi. Estima-se que no Iraque eram cerca de 550 mil antes do ataque do Estado Islâmico. Existem também outras comunidades numerosas na Europa e noutros locais, estando a maior na Alemanha.

Pinhal Novo, 29 de Janeiro de 2019
josé manuel rosendo

sexta-feira, 28 de dezembro de 2018

A lição que nos chega do Iémen




A grande lição que podemos recolher do Yémen está na parte final deste escrito, mas antes de lá chegarmos é importante algum contexto.

A guerra devasta o Iémen há mais de quatro anos. A contagem de mortos da Organização das Nações Unidas (ONU) apontava, em 2016, para cerca de 10 mil mortos. Daí para cá não se sabe quantas pessoas morreram. Mas sabemos, porque a ONU nos diz, que cerca de 20 milhões de pessoas vivem uma terrível insegurança alimentar, dependentes da ajuda que lhes chega. Os Médicos Sem Fronteiras dizem que houve um colapso total do sistema de saúde e também da economia do país. As doenças têm porta escancarada devido aos problemas sanitários. A tragédia é já apontada como a pior crise humanitária do século XXI e talvez por isso, por tudo isso ser uma vergonha, as partes directamente envolvidas sentaram-se à mesa e resolveram dar um sinal de que talvez seja possível reduzir o sofrimento de milhões de pessoas.

A 18 de Dezembro, na Suécia, houve um aperto de mão entre rebeldes Houthis e representantes do Governo Iemenita, e foi assinado um acordo para uma trégua. É coisa pouca, face à dimensão do problema, mas é alguma coisa. Esse acordo estabelece um cessar-fogo na cidade (e no porto) de Hodeida; foi dado um prazo de três semanas para reposicionamento de forças militares no exterior da cidade; as taxas portuárias de Hodeida vão ser transferidas para o Banco central de modo a que seja possível pagar salários aos funcionários públicos. Desde que o acordo foi assinado, é certo que as armas não ficaram em silêncio, mas sentar inimigos à mesa é sempre um passo obrigatório para chegar a algum resultado. Aliás, enquanto decorriam as negociações, os combates continuaram, mas o acordo foi assinado e o Conselho de Segurança da ONU já aprovou o envio de observadores para o terreno (para Hodeida e outros dois portos).

Paralelamente, em Marrocos, a 11 de Dezembro, foi aprovado o Pacto Global para as Migrações, no âmbito das Nações Unidas. Apenas 165 dos 193 países assinaram o documento. Posteriormente, a Assembleia Geral da ONU ratificou o documento: 152 países votaram a favor, 12 abstiveram-se e cinco votaram contra (Estados Unidos, Israel, Hungria, República Checa e Polónia). Durante as negociações, outros países europeus anunciaram que não assinavam o Pacto.
Este documento não é um Tratado. Estabelece princípios e é sobretudo um compromisso em defesa dos Direitos Humanos. Países como a Áustria, Chile, Brasil, Austrália, entre outros, ficaram de fora, dando ouvidos a Donald Trump. O governo belga caiu porque a coligação desfez-se depois de o Primeiro Ministro Charles Michel ter assinado o Pacto, algo que os Nacionalistas Flamengos não conseguiram suportar.

Esta recusa de alguns governantes de tentar resolver em conjunto um problema que é de todos, deixa-nos a pensar sobre o que vai na cabeça dos políticos destes países. Ao mesmo tempo chega-nos a notícia de que em 2018, estima-se que 150 mil refugiados tenham chegado ao Iémen. Sim, ao Iémen. É um aumento de 50% em relação a 2017.

Esta informação passou “ao lado” – pelo menos não dei por ela em Portugal – mas foi divulgada pela Organização Internacional para as Migrações (OIM - liderada por António Vitorino). Haverá quem se interrogue: como é possível que alguém tente obter refúgio, nem que seja provisório, num país em guerra? Como é possível que um país em guerra esteja de portas abertas para 150 mil pessoas quando a própria população não tem o que comer?
A OIM acrescentou que 20% destes refugiados são menores e a maioria viajam sozinhos; 92% destas 150 mil pessoas são oriundos da Etiópia e da Somália.

A OIM chama a atenção para este fluxo de refugiados que diz ser superior a outros fluxos e, em particular, à previsão de travessias no Mediterrâneo. O Iémen é apenas uma etapa nesta rota de refugiados que parte de vários pontos de África até ao Djibouti, para depois atravessar o Golfo de Aden até ao Iémen, e daí tentar chegar a outros países do Golfo. A OIM contabilizou 156 mortes nesta travessia – muito menos do que as cerca de duas mil mortes no Mediterrâneo, em 2018, mas a própria OIM disse que 156 mortos é um número longe da realidade.

Estes refugiados entram num país em guerra, atravessam campos minados e certamente alguns não conseguirão continuar viagem. É verdade que os que chegam ao Iémen não pretendem ficar no país, mas não é menos verdade que não encontram arame farpado nem são detidos ou reenviados para o ponto de partida. Talvez o caos no Iémen faça dos refugiados uma questão não prioritária, mas não deixa de ser assinalável que, quem quase nada tem, não levante obstáculos à chegada (ou passagem) de refugiados, enquanto aqueles que mais têm fecham fronteiras e constroem muros, travando a marcha de esperança de milhares de pessoas, condenando-as à morte no Mediterrâneo ou amachucando-lhes a dignidade em campos de refugiados sustentados com os fartos orçamentos dos países mais ricos.

O Director do Programa Alimentar Mundial, David Beasley, disse que o Iémen não é um país à beira da catástrofe, o Iémen já está em situação de catástrofe; o secretário-geral adjunto da ONU para os assuntos humanitários, Mark Lowcock, disse que o Iémen será o país com o maior problema em 2019.

Deste conjunto de factos, parece-me sensato retirar uma lição com base nas atitudes de quem acolhe e de quem é acolhido: o povo do Iémen não fecha as portas a quem o procura – talvez porque saiba bem o que é a guerra e a fome; os refugiados que procuram o Iémen não receiam entrar num país em guerra desde que esse passo seja o único que lhes dá alguma esperança numa vida melhor. Quem não entender o desespero de pessoas que se sujeitam a entrar num país em guerra para tentar encontrar um caminho de futuro, não entende nada.

Pinhal Novo, 28 de Dezembro de 2018
josé manuel rosendo

domingo, 23 de dezembro de 2018

Ainda há pérolas no Rio?



Em 2017 fui convidado a ir ao "Rota das Letras - Festival Literário de Macau". Senti-me lisonjeado e não merecedor do convite. Mas agradeço a mão amiga que me foi estendida, porque adorei, e porque fui onde talvez nunca chegasse a ir sem este convite. Dessa presença resultou este texto que agora partilho, escrito também a convite, aliás extensivo a todos os convidados de cada Rota das Letras. Desses textos - contos e outros escritos - a organização publica uma antologia trilingue, que já vai no sexto volume. É um privilégio. E aqui fica o texto publicado.




Ainda há pérolas no Rio?

Macau. Livros. Viagem. Ponto! Há viagens nunca imaginadas, nunca equacionadas. Afinal, porquê? Há caminhos que acabamos por fazer sem nunca termos imaginado que os nossos sapatos por eles iriam passar. Agora que já se sentem os primeiros odores a filosofia barata, o lugar-comum mais adequado que deveria seguir-se seria dizer que são esses os caminhos que acabam por mais nos marcar.

Os rios sempre me fascinaram. Depois de ter visto o Estreito do Bósforo, tendo levado para Istambul a ideia de fixar o momento em que estaria com um pé na Ásia e outro na Europa – ideia nunca concretizada; depois de ter visto o Tigre e o Eufrates, e deles comer o peixe, e depois de ver essa maravilha que é (ou era...) o delta onde se juntam; depois de outros rios, queria ver o Rio das Pérolas. Sabia que não ia ver pérolas, mas ainda assim queria ver. Vi as águas turvas revolvidas por sucessivos barcos apressados.

O eterno problema de um visitante é o imaginário construído e a realidade que nos é dada a ver num curto espaço de tempo, mais curto ainda quando há agenda para cumprir. Fica desde logo comprometida essa aventura, sempre com grande potencial encantatório, de nos perdermos nos mercados, nos recantos, nas conversas, em locais simultaneamente desconhecidos e desafiadores, onde tudo é simultaneamente velho e novo aos olhos do visitante.

Nunca imaginei visitar Macau. Tão longe. Geralmente fico a meio caminho, no Médio Oriente. As memórias recentes de Macau são o arrear da bandeira aquando da transferência de soberania e o célebre caso do “fax de Macau”. O imaginário de Macau, pelo menos o meu, faz-me recuar cinco séculos. O tempo, escreve-se, em que se terá afirmado como o primeiro entreposto europeu na China, sendo depois o último território chinês a deixar de ser colonizado. Confesso a minha maior atracção por esse tempo do que pelos arranha-céus envidraçados da actualidade. Macau não tem, aliás, o exclusivo dessa sensação que tenho sempre em outra qualquer cidade: a de preferir as zonas velhas, os bairros característicos, as pessoas, a um alegado desenvolvimento arquitectónico e tecnológico. E tenho preferência por esses tempos e por esses lugares porque eles são, de facto, diferentes, e é neles e com eles que nos podemos surpreender e querer ainda saber e conhecer mais.

O imaginário de Macau leva-me para as naus portuguesas que atravessaram meio mundo e para os navegadores que a fio de espada conquistaram território; para imensos portos cheios de mercadorias com gente atarefada em correria, com navios a chegar e a partir; para as ruas estreitas e escuras com casas de ópio; leva-me aos poemas de Camilo Pessanha, inevitável; leva-me às ruas e casas tipicamente portuguesas, com nomes portugueses, a onze mil quilómetros de casa; leva-me a tentar perceber como é que essa imensidão de poder que é a China teve paciência (e sabedoria?) para que durante séculos permitisse a presença estrangeira num local tão estratégico; Interrogo-me como seria essa realidade nos séculos XVI, XVII e por aí fora... Portugal à porta da China; qual será o cheiro das ruas do ópio? E como seriam as camas dessas casas de perdição? Como seria o quotidiano que juntava portugueses e nativos? Como seriam os piratas que navegavam na região? Como comunicavam os nativos com os europeus? Havia mesmo pérolas? Tantas perguntas para poucos dias de agenda preenchida.

Gosto da temperatura mesmo com muita humidade e chuva miudinha. Gosto de sair do Grand Lapa para fumar um cigarro e observar, nas traseiras, um casal idoso, logo pela manhã, entre o nevoeiro, a fazer aqueles exercícios tradicionais e indecifráveis aos meus olhos. Registo o taxista que coloca o taxímetro a zeros depois de perceber que tinha havido um erro de comunicação e que seguia na direcção errada. Observo os milhares de chineses que têm como destino os casinos e sinto a certeza de que não vou cruzar-me com eles a olhar para uma qualquer mesa de jogo à espera da sorte dos dados. Entro nas lojas de velharias e tento negociar um velho cachimbo de ópio, mas acabo a comprar uma réplica para turista. Entro num pequeno templo budista e cumpro o ritual da queima do incenso. Perco-me nas ruas com nomes portugueses, nos restaurantes portugueses, nas igrejas. 

Encontro portugueses de quem tinha perdido o rasto e reencontro-os a milhares de quilómetros de casa. Não, não é mentira, Macau não é exemplo, mas há mesmo um português num qualquer ponto do mundo onde julgamos que isso não é plausível, neste caso um português conhecido dos tempos de juventude que em Macau decidiu viver. Os portugueses em Macau sentem necessidade de ouvir e estar com os portugueses que chegam de Portugal. Essa avidez nota-se na atenção que nos dão, nas perguntas que fazem, na atenção com que ouvem. A cada conversa fica a ideia de que gostam muito de estar em Macau, mas sentem a distância como que a roubar-lhes uma outra vida. Não se pode viver duas vidas.

Dou por mim à procura de Portugal e se calhar devia estar à procura dos macaenses. Ou devia escrever chineses? Apontam-me, de noite, as luzes do Casino Lisboa, o velho e o novo. Luzes de ilusão. Registo a noção de espaço dos chineses. Não os incomoda a excessiva proximidade, nem o roçar de ombros ou o encosto imprevisto. Senhor do meu espaço pessoal, da minha bolha, estranho no início, mas acabo por habituar-me rapidamente.

Chego a Macau levado pela mão de um livro que é fruto de outras viagens. Um livro sobre uma realidade substancialmente diferente. Pessoas diferentes, realidade económica diametralmente oposta, culturas muito afastadas, necessidades imediatas singulares, histórias diferentes. Um mundo de diferenças que formam um puzzle que nunca iremos conseguir terminar mas que nos tornam donos e conhecedores de uma riqueza não mensurável.

Escrevo, mas não sou um escritor. Gosto de escritores. Juntar palavras para lhe dar um sentido, depurado e escorreito, honesto, dá trabalho. Mas dos escritores não quero apenas a escrita, quero o pensamento. Esse malandro. Quero saber de que matéria-prima saiu aquele livro, aquela crónica ou aquele conto. Quero sempre conhecer mais sobre o sítio de onde vieram as tais palavras, juntas – buriladas – e com sentido, que me fascinam.
Já quando vou ao cinema é a mesma coisa. Quero que a tela me conte uma boa história. Uma boa história, apenas isso, tudo isso. Quero que alguém me leve pela mão através de uma realidade que me diga alguma coisa. Que me perdoem os técnicos de luz, de som, de fotografia, o que eu quero mesmo é uma boa história. Ficção ou realidade, quero uma boa história. Deixo aos cinéfilos as questões da luz, da escolha dos actores e dos enquadramentos da acção... Eu quero é uma boa história, que me traga inquietação e que me faça esquecer alguns ruminantes de pipocas nas cadeiras à volta.

É por tudo isto que acho os escritores muito mais (ou menos) interessantes quando não estão a falar de livros. Qualquer festival literário fica a ganhar se arranjar espaço e modo de os escritores não falarem apenas dos livros ou do jeito que mais gostam de escrever. Não quero saber se escrevem de manhã ou à noite, se escrevem de pijama ou na esplanada de um café, se bebem muito café ou aguardente velha, se escrevem sob o efeito de opiáceos, se escrevem com lapiseira ou lápis de carvão, ou no computador, não quero saber nada disso. Quero saber o que eles pensam do mundo, da felicidade e do amor, das guerras e dos políticos, dos governos e das crianças, dos velhos, da vida e da morte. E da Literatura, por que não? E de tantas outras coisas. Quero que os escritores me tragam inquietação. Quero que introduzam elementos novos na permanente equação que tentamos resolver a cada vinte e quatro horas. Quero que os escritores me alertem para aspectos da vida e do mundo sobre os quais nunca reflecti.

Não quero jogos com palavras despidas de sentido. Nem quero páginas de texto que me obriguem constantemente a voltar à primeira linha para tentar agarrar o sentido da mensagem. Não quero livros que me digam o que fazer, quero livros que me ajudem a pensar e a decidir com mais conhecimento para dar passos em frente. Quero ter a capacidade de reflectir e pensar sobre a diferença entre pescar no Bósforo, no Tigre, no Eufrates ou no Rio das Pérolas. Assim os escritores me ajudem. E digam-me que ainda há pérolas no Rio. Porque também quero sonhar.

Pinhal Novo, 13 de Novembro de 2017 
josé manuel rosendo