domingo, 2 de agosto de 2020

Abutres, raposas e as leis que permitem vigarices

Créditos da imagem: Essential Business


Não sei se posso ser processado por chamar de vigarice a algo que está dentro da legalidade, mas ainda assim arrisco. Afinal, quando o primeiro argumento que ouvimos para defender uma vigarice é o de que “é tudo legal”, sinto uma imediata vontade de fugir. É apenas uma opinião, mas quando se sente o cheiro da vigarice a invadir-nos as narinas não há forma de dizer o contrário.

 

Quando se vende um “pacote” de imóveis avaliados em 631 milhões de euros por apenas 364 milhões de euros, dá que pensar. Paralelamente a essa venda, o Novo Banco pediu que o Fundo de Resolução cobrisse (com 260 milhões de euros) parte do “prejuízo” que a venda provocou. E o drama é que a venda foi aprovada por quem tinha de se pronunciar, nomeadamente pelo próprio Fundo de Resolução. Os imóveis foram vendidos a preço de pechincha, alguém vai encaixar o lucro de uma revenda a preço de mercado e, depois, o Fundo de Resolução trata de colocar mais dinheiro para compensar as perdas do Novo Banco. Nada é ilegal.

 

Fartos de salvar bancos e banqueiros, temos agora mais esta negociata do Novo Banco. Como sempre, as instituições e “empresas” envolvidas remetem-se ao silêncio, o Governo indigna-se e o Banco de Portugal dá respostas “redondas” quando lhe é perguntado se pode garantir que o negócio de venda de imobiliário não envolve (como compradores) alguém também ligado à estrutura accionista do Novo Banco. Em bom rigor não pode dar essa garantia, porque o secretismo que envolve os Fundos de Investimento registados em paraísos fiscais bloqueiam o acesso a essa informação.

 

Diga-se em abono da verdade que, quanto ao empréstimo concedido, o Novo Banco fez com este pacote imobiliário aquilo que qualquer Banco faz com uma casa que lhe pertença: empresta dinheiro a quem a quiser comprar. Mas se o negócio com um qualquer cidadão, impõe que o Banco saiba a quem empresta o dinheiro, não vá dar-se o caso de ser um mau pagador, o que é fantástico neste caso é que não é possível saber a quem o dinheiro foi emprestado. É pelo menos isso que se infere da reportagem de Paulo Pena no jornal Público, embora também seja  dito que há hipotecas que servem de garantia de pagamento.

 

Aqui chegados, só podemos pensar naquela imagem clássica do cão que procura morder a própria cauda e anda às voltas sem parar e sem nunca conseguir chegar à cauda. De nada adianta a indignação ou os discursos moralistas de quem espera algo que se assemelhe a ética, quando estão em campo os tais Fundos de Investimento (também conhecidos por Fundos Abutres) e negócios de muitos milhões, ainda por cima com a garantia do nosso dinheiro, isto é, do dinheiro do Estado. A indignação de alguns políticos, por não se conhecer a identidade da estrutura acionista das offshores através das quais o negócio foi feito, só pode provocar o nosso sorriso de incredulidade. Então, não sabem como funciona?

 

É bom que registemos este facto: a Lei permite que estes negócios se façam.

 

E é bom que registemos um segundo facto: este negócio só é possível porque existem paraísos fiscais e as tais empresas offshores. E todos sabemos a quem convém e quem não quer acabar com esta realidade. Não há negociata ou escândalo financeiro que não tenha passagem obrigatória por offshores e paraísos fiscais.

 

A Comissão Europeia – que considera que há paraísos fiscais bons e outros maus – recomendou  recentemente aos países da União Europeia que recusem ajudas públicas às empresas com ligações aos territórios que constam da lista negra de paraísos fiscais, estando as Ilhas Caimão nessa lista, precisamente onde estão registadas as offshore que entram no neste negócio com o Novo Banco.

 

A questão é política, e já que não é possível ao Estado português decidir sobre a existência de paraísos fiscais fora do nosso território, será possível legislar no sentido de proibir que qualquer instituição ou empresa portuguesa mantenha negócios ou ligações a empresas offshore. Para podermos falar de transparência não podemos ter toda esta opacidade a envolver o nosso dinheiro e os interesses do país.

 

Enquanto as raposas estiverem legalmente dentro do galinheiro, já sabemos o que vai acontecer. É uma questão de tempo e oportunidade. Não se trata de desamor ou de maldizer a Pátria, mas já Eça dizia através de João da Ega que “isto é uma choldra torpe”. Se não é, parece!

 

Pinhal Novo, 1 de Agosto de 2020

josé manuel rosendo

domingo, 19 de julho de 2020

A guerra na Líbia, o Sultão e o Faraó

 
Principal Oração de sexta-feira, em Benghazi, 4 de Março de 2011, poucos dias depois do início da revolta que fez cair Mohamar Kadhafi. Foto de arquivo: jmr
Falemos em primeiro lugar dos homens que não gostam de ser contrariados. Faz parte das características de quem se julga todo-poderoso, dono da terra que pisa e do Céu que espera alcançar. Quem lhes faz frente, já sabe que se pode dar mal. Recep Teyyip Erdogan e Abdel Fatah al-Sissi, Presidentes da Turquia e do Egipto, por esta ordem, afiam as facas e centram atenções na Líbia.

Erdogan, 66 anos, economista, foi Primeiro-ministro da Turquia desde 2003 até ser Presidente, desde 2014, governa com mão-de-ferro e varre quem se lhe opõe; Al-Sissi, 65 anos, militar, Ministro da Defesa do Egipto entre 2012 e 2014, até chegar a Presidência da República, faz parte do grupo de autocratas que não se inibem de “ser eleitos” com quase 100% dos votos, tendo liderado o golpe militar que afastou o Presidente Mohammed Morsi, precisamente o homem que o nomeara Ministro da Defesa.

Ao breve perfil dos dois homens que podem vir a enfrentar-se na guerra na Líbia, juntemos agora a questão da geografia. A Turquia (entre o Médio Oriente/Ásia e a Europa) e o Egipto (entre o Médio Oriente e África) estão envolvidos em conflitos/guerras em relação às quais dificilmente podem ser apenas meros observadores.
Na Síria, que tem fronteira com a Turquia, a questão Curda, foi factor decisivo para o envolvimento de Erdogan. Na Líbia, a questão é diferente e Erdogan assume claramente a atitude do Sultão que não perdeu a esperança de restaurar o Império, seja qual for a forma que o Império venha a ter, ao mesmo tempo que até pode dizer que apoia a facção (Governo) que tem o reconhecimento das Nações Unidas.
Al-Sissi, líder do país árabe mais populoso, herdeiro de uma civilização que foi terra de Faraós e ponte entre a Ásia e a África, foz do Rio Nilo, detentor das chaves do Canal do Suez, quer ter uma palavra a dizer no futuro da região.

Turquia e Egipto são dois países que precisam de expandir influência, quiçá precisam de alargar o espaço vital – essa necessidade que tantos males já provocou à humanidade – se não literalmente, pelo menos de forma a terem influência directa noutros países.

A situação política interna em cada um deles é, também, factor a ter em conta e pode levar à solução clássica de encontrar um inimigo externo para o consequente toque a rebate em torno da bandeira nacional, relegando para segundo plano as querelas internas.  
A guerra na Líbia surge também como o possível palco em que Erdogan e Al-Sissi se preparam para acertar contas antigas. Contas que começaram a ser feitas aquando do golpe militar (2013) no Egipto, com que Abdel Fatah Al-Sissi afastou Mohammed Morsi (e a Irmandade Muçulmana) do poder. Erdogan via na Irmandade uma aliada, quiçá uma ponte para que o novo Sultão voltasse a estender o Império que já teve capital em Istambul.
E se a Turquia já está presente na Líbia, com meios, militares e milícias, que apoiam o governo líbio sedeado em Tripoli, e que tem o apoio da ONU, o Egipto dá todos os sinais de querer entrar nesta guerra, mas ao lado do Marechal rebelde Khalifa Haftar.

Dos últimos dias vem o apelo do parlamento de Tobruk, aliado de Khalifa Haftar, para que as tropas egípcias atravessem a fronteira e façam frente às forças do Governo de Tripoli, apoiado pela Turquia. As tribos da Cirenaica (região este da Líbia) alinham com o apelo lançado ao Egipto. Al-Sissi já traçou uma linha vermelha: “os canhões” egípcios podem entrar na guerra se as forças turcas e do governo de Tripoli relançarem o assalto a Sirte, cidade que é porta de acesso à maior zona de terminais de exportação de petróleo.

A Turquia, que não foi chamada a entrar na guerra na Síria, mas entrou, foi chamada a entrar na guerra na Líbia, na qual também já entrou, mas acusa o Egipto de não ter legitimidade para entrar no conflito. A Turquia está a acusar o Egipto de algo muito semelhante ao que a própria Turquia fez na Síria.

O que fica bem visível nas atitudes de Erdogan e Al-Sissi é que são partidários da conhecida “fuga para a frente”: cada um deles já tem “frentes de guerra” para preocupações suficientes, mas ainda assim não se esquivam a mais uma.
Vejamos: a Turquia enfrenta há décadas a rebeldia do PKK (Partido dos Trabalhadores do Curdistão), bombardeia com frequência alvos do PKK no norte do Iraque, está envolvida na guerra na Síria, tem 3 milhões de refugiados que ameaça deixar avançar para a Europa, compra sistemas de mísseis à Rússia enquanto é membro da NATO e, talvez fonte principal da deriva geopolítica, já esqueceu uma eventual entrada na União Europeia; o Egipto, com um regime ditatorial disfarçado, tem problemas com os ataques terroristas no Sinai, tem problemas com a oposição que, embora fortemente perseguida vai dando sinais de presença, enfrenta um gravíssimo problema por causa das águas do Rio Nilo (a relação com a Etiópia e Sudão pode descambar) e enfrenta obviamente a contaminação provocada pela guerra na vizinha Líbia.

A Líbia promete ser um campo de batalha com consequências muito para além das suas fronteiras. De um lado temos o Governo (reconhecido pela ONU) de Fayez Al Sarraj, com o apoio da Turquia, Qatar e fortes milícias com influência da Irmandade Muçulmana; do outro lado, o Marechal Khalifa Haftar, com o apoio da Rússia, Emirados Árabes Unidos, Arábia Saudita e Egipto.
Parece complicado, mas ainda não é tudo: falta referir que os Estados Unidos e a França também apoiam o Marechal rebelde e que a Itália apoia o Governo de Tripoli. Aspecto importante: o Egipto é o país árabe que mais apoio militar recebe dos Estados Unidos.
Não deixa de ser curioso que Estados Unidos e Rússia apoiem o mesmo campo; que países europeus estejam em campos opostos (onde está a política externa da União Europeia?) e que países da NATO também estejam em campos opostos. Por último (e podemos encontrar mais “contradições”) sublinhe-se que a Turquia e a Itália (de forma mais discreta) são os únicos protagonistas a apoiarem o Governo que é reconhecido pelas Nações Unidas.

Tudo isto porque a Líbia tem petróleo, muito petróleo, e o Mediterrâneo (com as riquezas que lá estão) é um território que todos querem influenciar, para além do poder que as potências regionais pretendem alargar.

Pinhal Novo, 19 de Julho de 2020
josé manuel rosendo

segunda-feira, 22 de junho de 2020

Verão quente na Palestina?

Faixa de Gaza, 2018. Foto: jmr
O Médio Oriente já tem sofrimento e guerras quanto baste, mas parece que há sempre uma forma de acrescentar problemas. Iémen, Síria e Líbia, são palco de conflitos sangrentos sem fim à vista e com grande potencial para ficarem ainda mais violentos. O cessar-fogo - para concentrar esforços no combate à pandemia - pedido por António Guterres, Secretário-Geral da ONU, foi ignorado. Agora, para além destes três palcos de guerra, corremos o risco de ver “incendiar” a Palestina.

Quando faltam menos de duas semanas – 1 de Julho, a data referida por Benjamin Netanyahu – para que avance a anexação dos colonatos israelitas na Cisjordânia ocupada e do Vale do Jordão, não há qualquer sinal de pressão da comunidade internacional para que Israel recue numa acção unilateral ao arrepio de tudo o que está determinado nos Acordos e Resoluções das Nações Unidas. Será o “plano Trump” a dar os primeiros passos.

Com receio do que pode estar para vir, várias fontes dizem que a Autoridade Palestiniana (AP) já destruiu documentos secretos dos serviços de segurança palestinianos, depois de os digitalizar. A AP receia a repetição do que aconteceu durante a segunda Intifada (2000-2005), quando o Exército israelita entrou nos mesmos serviços de segurança palestinianos e ficou na posse de documentação secreta. Aliás, a AP acusa o Exército israelita de ter entrado em Ramallah (o que Israel nega), sede da AP, durante a semana passada, o que apenas poderia acontecer – segundo os Acordos de Oslo, 1993 – em coordenação com a AP.

O Primeiro-ministro da AP, Mohammed Shtayyeh, avisou que o Verão poderá ser “quente” se Israel avançar com o “plano Trump”. É um teste demasiado importante para que a AP nada faça, sob pena de perder de vez a voz que ainda tem a nível internacional e, mais importante, deixar de contar para os palestinianos que ainda acreditam na resistência e em um Estado palestiniano. A grande questão é a de saber o que poderá a AP fazer, de facto, que possa mudar o rumo que parece estar traçado.

O Hamas apelou à unidade e à resistência. O Movimento Islâmico que controla a Faixa de Gaza, considera que é “dever de cada palestiniano livre combater a agressão” israelita e pediu a união da classe política palestiniana. Os palestinianos - Fatah e Hamas - continuam divididos.

Até agora, o aliado que mais se chegou à AP foi a Jordânia, um dos dois Estados árabes que assinaram Acordos de Paz com Israel. O Rei Abdullah II reiterou oposição ao projecto de anexação e enviou o chefe da diplomacia jordana à AP, em Ramallah. O helicóptero jordano aterrou na Mukata e Ayman Safadi, foi claro: o plano de anexação é uma ameaça sem precedentes para o processo de paz e o Médio Oriente entrará num longo e doloroso conflito.

Ainda não se conhecem pormenores do processo de concretização do “plano Trump”, aceite por Israel e recusado em absoluto pela AP, mas para os que defendem o “grande Israel” este é o momento: uma "oportunidade histórica" para expandir o território e a soberania de Israel, reconheceu Benjamin Netanyahu.
O jornal Israel Hayom (Israel Hoje), considerado um jornal que reflecte a opinião de Netanyahu, admite que o processo possa avançar por fases. Primeiro, a anexação de alguns colonatos, depois o Vale do Jordão. O objectivo será, entre as duas fases, chamar os palestinianos para “negociações de paz”, o que dificilmente acontecerá, e dará argumentos para concretizar a segunda fase e consumar o “plano Trump”. Facto consumado, com a ilusão de que Israel demonstrou vontade para negociar.

O jornal acrescenta ainda que o Primeiro-Ministro israelita não espera que a anexação provoque, da Europa, qualquer resposta punitiva, para além das habituais e indignadas declarações de protesto. Quanto aos países árabes, têm mais em que pensar: Sissi (Egipto) atento à guerra na Líbia; a Arábia Saudita atenta ao Irão e envolvida na guerra no Iémen; Bashar al Assad, ainda envolvido no caos da guerra na Síria; o Líbano em profunda crise política e financeira. Neste contexto, a “causa palestiniana” é também pouco mais do que retórica para os países árabes e Netanyahu não espera danos substanciais nas relações actualmente existentes.

É este o quadro geral de uma situação que ninguém parece ter vontade e/ou capacidade para contrariar. No que diz respeito ao conflito com os palestinianos, Israel atira tudo o que é Direito Internacional para o caixote do lixo e não há uma sanção, um aviso, uma resposta com efeitos concretos, que obrigue Israel a respeitar os Acordos e Resoluções que a comunidade internacional aceita e apoia – e que estiveram na base da criação do próprio Estado de Israel – para que os palestinianos também tenham um Estado, digno e soberano, e não apenas umas bolsas de terreno a que querem chamar Estado.

Esta é uma prova de fogo para a chamada “comunidade internacional”, para as Nações Unidas e também para a Liga Árabe. A ver vamos se, de facto, significam algo em que ainda podemos acreditar, enquanto instituições para o entendimento entre as nações e protecção dos mais fracos face aos mais poderosos, ou se tudo não passa de uma encenação em que os poderosos “podem e mandam” e tudo o resto é faz-de-conta.

A ver vamos como vai ser o Verão na Palestina.

Pinhal Novo, 22 de Junho de 2020
josé manuel rosendo

domingo, 21 de junho de 2020

Houthis acusam António Guterres de falta de coragem para enfrentar os grandes poderes.

Hisham Sharaf Abdullah, Ministro Negócios Estrangeiros Houthi.
O Ministro dos Negócios Estrangeiros do Governo Houthi, estabelecido em Sanaa, Iémen, acusa o Secretário-Geral da ONU, António Guterres, de não conseguir fazer frente aos grandes poderes que se movimentam nas Nações Unidas. 

Um dia depois de António Guterres ter enviado ao Conselho de Segurança da ONU, o relatório anual em que retira a Arábia Saudita da lista negra das Nações Unidas, o chefe da diplomacia Houthi, Hisham Sharaf Abdullah, em entrevista à Antena 1, disse que Guterres tomou uma decisão que defende os interesses financeiros da ONU mas não respeita os princípios da organização.

Hisham Sharaf Abdullah admite que António Guterres está sob forte pressão mas devia ter tido a coragem de dizer que não é adequado tirar a Arábia Saudita da lista negra da ONU enquanto as crianças iemenitas continuam a morrer, vítimas dos ataques aéreos da coligação liderada por Riade.

Transcrição da entrevista que teve como único ponto a decisão de António Guterres.

O que pensa  da decisão do secretário geral das Nações Unidas de retirar a Arábia Saudita da lista negra da ONU?

Em minha opinião, e penso que é partilhada por muitos, resulta da pressão, da riqueza e das ligações do regime saudita nas Nações Unidas. A ONU tem sido ameaçada muitas vezes de não obter apoio suficiente da Arábia Saudita e penso que depois do que o senhor Trump fez com a Organização Mundial da Saúde, e depois de sair de outras agências (da ONU), isso assustou as Nações Unidas. 
Retiraram a Arábia Saudita da lista negra debaixo da pressão de corte de fundos. É uma decisão errada e não sei como é que outros países e diplomatas que trabalham com as Nações Unidas ficaram calados e deixaram que esta decisão fosse tomada.

Mas o Governo Houthi continua na lista negra...

Sim, sim...  

O que pensa disso?

É o mesmo que a ONU está a fazer há muito tempo... 
Os fortes... Os ricos... Os que têm muitas ligações (países ou poderes), fazem o que querem e os que não têm acesso à ONU ou que não podem apelar, ninguém se importa com eles. É o que tem acontecido nos últimos 5 anos e vamos agora entrar no sexto ano de guerra no Iémen. Isto vai continuar até que alguns países e o mundo possam reverter este processo.

Pensa que António Guterres não é suficientemente forte para enfrentar a Arábia Saudita?

Penso que olhou para os interesses da Organização das Nações Unidas enquanto uma agência internacional com muitas despesas. Penso que olhou mais para o aspecto financeiro das Nações Unidas do que para os princípios da ONU. Penso que está debaixo de uma grande pressão. É a mesma pressão a que esteve sujeito Ban Ki-moon quando era Secretário-Geral das Nações Unidas. Fizeram-lhe o mesmo. Mas penso que as circunstâncias agora não são as mesmas desse tempo. Agora, as Nações Unidas têm sido alvo de vários ataques dos Estados Unidos e de outros países. Estão outra vez com falta de dinheiro. O senhor Guterres devia ter coragem para os enfrentar os grandes poderes e dizer-lhes que não é adequado, neste momento, tomar esta decisão, enquanto muitas crianças no Iémen estão a ser mortas pela Arábia Saudita.
Todas as notícias que chegam de Sanaa e de outros locais que nós controlamos, mostram que há uma enorme quantidade de ataques aéreos, muitas pessoas estão a ser mortas e ninguém quer ouvir. Ouvem o que acontece na Líbia, na Síria... O que aconteceu entre a China e a Índia. Os poderosos aparecem na fotografia e os que não têm acesso aos media internacionais, como nós... não aparecem. Ninguém nos ouve ou olha para o que se passa no Iémen. É o sexto ano de guerra num país onde há 32 milhões de pessoas. Ninguém olha para nós enquanto não acontecer alguma coisa no Mar Vermelho que corte a passagem dos navios de transporte de petróleo. Muita coisa tem de acontecer até que o mundo olhe para as pessoas deste país.

O último ataque aéreo foi hoje (16 de Junho) ...estou certo? Hoje ou ontem?

Hoje, sim foi hoje... Hoje de manhã 13 pessoas foram mortas, entre elas 4 crianças... 

Foi um ataque da Arábia Saudita?

Quem bombardeia o Iémen é a Arábia Saudita... Os Emirados Árabes Unidos tentam manter-se afastados dos ataques e apenas tratam de outros assuntos... Os Sauditas fazem sucessivos ataques... E o que é engraçado é que ao mesmo tempo falam de negociações com pessoas aqui em Sanaa, ou como eles dizem com os Houthis...

Quantas crianças morreram no Iémen no último ano nos ataques sauditas?

De acordo com algumas estatísticas que não sei se estão completas tivemos 590 crianças mortas*... Crianças inocentes mortas enquanto brincavam e jogavam futebol quando foram atingidas pelos ataques aéreos. Repito: ninguém se preocupa connosco excepto quando algo muito forte acontecer neste país e penso que dentro de pouco tempo o mundo inteiro vai olhar para nós.

O que quer dizer com isso?

Espero, e é a minha esperança enquanto político, uqe algo grande vai acontecer dentro de poucas semanas ou um mês. O mundo vai voltar olhar para nós quando um grande problema acontecer nesta parte do mundo.

Grande problema tal como?

Alguma coisa pode acontecer no Mar Vermelho... Ou no Mar Arábico... Talvez um grande massacre seja cometido pelos sauditas. E então o mundo vai sentir vergonha de olhar para o que acontecer. Os sauditas fazem voar os aviões no nosso país e não se importam nem um pouco com o que acontece desde que tenham riqueza e desde que tenham o apoio dos grandes poderes... Podem fazer o que quiserem...

* No momento desta entrevista, o Ministro iemenita não estava na posse dos números em relação aos quais foi questionado. Posteriormente, enviou a informação sobre o número de crianças vítimas dos ataques aéreos desde o início da guerra: 7.500! (até Dezembro de 2019)


Pinhal Novo, 20 de Junho de 2020
josé manuel rosendo

domingo, 14 de junho de 2020

O Tribunal Penal Internacional não peca por excesso, mas por defeito: a invasão do Iraque, em 2003, está por investigar e julgar.

Anciãos de aldeia nos arredores de Nassíria, Iraque, Abril 2004. Foto: jmr
Qualquer instituição internacional que tenha o atrevimento de tratar os Estados Unidos como apenas mais um país entre todos os outros, já sabe que vai ser alvo da fúria de Donald Trump. O actual inquilino da Casa Branca não esgrime argumentos, não contrapõe, não dialoga, não tenta desmontar as teses que lhe desagradam. Não! Donald Trump, ofende e ameaça quem se lhe opõe ou tem opinião contrária. E o mais grave é que tem poder para fazer o que quer.

A implícita supremacia de que o Presidente norte-americano se julga possuído – que o coloca acima da Lei e que o afasta do multilateralismo que é o concerto entre nações – dá azo a uma escalada de tensão em todos os conflitos em que se vê envolvido, com prejuízo de toda a comunidade. Quando devia ser conciliador e procurar soluções, Trump é um verdadeiro incendiário. Os únicos que gostam desta atitude são os seus eleitores que, muito provavelmente, lhe vão dar um segundo mandato presidencial.

As Administrações norte-americanas (apesar do Estatuto de Roma ter sido assinado por Bill Clinton, em 1998) sempre defenderam que os seus militares em missões externas não poderiam ser acusados de crimes de guerra. Aliás, precisamente no ano em que o Estatuto de Roma entrou em vigor (2002), George W. Bush, não se coibiu de chantagear os países que decidissem entrar para o TPI, ameaçando-os com a retirada de assistência militar norte-americana. No mesmo ano, o Congresso autorizou o Presidente a usar meios militares para libertar militares norte-americanos que viessem a estar detidos às ordens do TPI.

A mais recente investida contra uma instituição que trata os Estados Unidos tão só como par entre pares, está consubstanciada no decreto que estabelece sanções contra os Procuradores do Tribunal Penal Internacional (TPI) que se atrevam a investigar eventuais crimes de guerra que tenham sido cometidos por militares norte-americanos no Afeganistão. O TPI autorizou, no início de Março, uma investigação para apurar eventuais crimes de guerra e contra a humanidade, que tenham sido cometidos por militares norte-americanos, militares afegãos e taliban.

É certo que os Estados Unidos nunca ratificaram (apesar de inicialmente terem assinado) o Estatuto de Roma que estabelece do TPI desde 2002, mas ele existe e está ratificado por mais de 120 países, havendo outros que o assinaram mas ainda não procederam à sua ratificação. O TPI pode investigar casos de genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra e também o crime de agressão, quando cometidos ou sofridos por Estados que tenham ratificado o Estatuto de Roma. O Afeganistão é um Estado-membro e, queiram os Estados Unidos ou não, a investigação é legal e legítima. Como está referido no próprio Estatuto de Roma “no decurso deste século (foi redigido em 1998), milhões de crianças, homens e mulheres têm sido vítimas de atrocidades inimagináveis que chocam profundamente a consciência da Humanidade” e é isso que não pode passar sem investigação e, se for o caso, por julgamento e condenações. É uma questão de Direitos Humanos.

Depois da ameaça de Donalp Trump contra os Procuradores do TPI, chegou a solidariedade de Benjamin Netanyahu. O Primeiro-ministro israelita acusa o TPI de estar politizado e obcecado numa caça às bruxas contra os Estados Unidos e Israel, enquanto esquece as violações de Direitos Humanos no Irão. Tal como Trump, Netanyahu também se julga possuído de uma supremacia que o coloca acima da Lei, seja qual for a origem que lhe atribua. Israel também não faz parte do Estatuto de Roma.
Para que fique completo o eixo da nossa preocupação (para não citar directamente George W. Bush) só falta mesmo que Jair Bolsonaro se junte à frente de luta contra o TPI. Sendo que ainda recentemente o TPI aceitou analisar uma denúncia do Partido Democrático Trabalhista, que acusa Bolsonaro de crimes contra a humanidade, devido à conduta face à pandemia do novo coronavírus, talvez não tenhamos de esperar muito.

O TPI é considerado um marco na justiça internacional, mas países como Estados Unidos, Israel, Rússia, China, Índia e Irão continuam de fora. Se o TPI peca por alguma coisa não é certamente pelos eventuais crimes que pretende investigar, mas sim por outros que devia investigar e até agora não o fez. Precisamente por essa falta, alguns países africanos ameaçaram deixar o Estatuto de Roma, considerando que o TPI estava demasiado focado nos crimes cometidos em África e esquecia outros crimes cometidos noutros continentes. Um deles, sem dúvida, é a invasão do Iraque: foi feita com base numa mentira, mas até agora ninguém foi responsabilizado pelas mortes e sofrimento que essa mentira provocou. Desde 2003 que o Iraque mergulhou num caos que ninguém sabe quando poderá terminar.

Pinhal Novo, 14 de Junho de 2020
josé manuel rosendo






Os horrores da guerra na Líbia

Corpos carbonizados, Tripoli, junto à Brigada Khamis, em 29 de Agosto de 2011. Foto: jmr 
São crimes sem perdão. As Nações Unidas manifestaram-se horrorizadas perante a informação de pelo menos oito valas comuns descobertas na Líbia, numa zona a cerca de 60 km de Tripoli, após a tomada da região por forças governamentais. A informação foi avançada pelo Governo do Acordo Nacional (GNA), sediado em Tripoli, que tem o apoio da chamada “comunidade internacional” e que combate o Exército Nacional da Líbia (LNA), liderado pelo Marechal Khalifa Haftar.
Não se sabe ao certo quantos corpos estavam nestas valas comuns – e se elas de facto existem, mas a ONU pediu um inquérito independente e eficaz. Sabemos como isso é difícil num país mergulhado no caos após quase uma década de guerra. Aliás, o que tem acontecido na Líbia – tal como na Síria – justifica que sejam investigados os crimes de guerra e julgados os responsáveis. Desde os armazéns/prisão com corpos incinerados ainda nos dias em que Mohammar Kadhafi era o dono do país, até ao vale-tudo de uma guerra em que os líbios são já mais vítimas do que protagonistas.

Fonte: Al Jazeera em 7 de junho de 2020


Nos últimos dias verificou-se um recuo das forças do LNA. Parece ter falhado a tentativa de conquista de Tripoli e o Marechal Haftar reposiciona forças. Para isso muito terá contribuído também a retirada de centenas de mercenários russos (grupo Wagner) da linha da frente. De acordo com várias fontes estarão agora concentrados na província de Jufra, no centro do país, controlada pelas forças de Haftar. O Marechal rebelde (esteve exilado nos Estados Unidos depois de recrutado pela CIA na década de 1980 para tentar derrubar Kadhafi e esteve também no Conselho Nacional de Transição, que liderou a revolta e levou à queda de Kadhafi em 2011), conta agora com o apoio da Rússia, Egipto e Emirados Árabes Unidos. A ONU dá ainda conta da presença de mercenários do Chade e do Sudão.

Do lado do GNA, há o apoio da ONU, do Qatar, da Turquia e de mercenários sírios (alguns de grupos islamitas que combatiam Bashar Al Assad) enviados pelo Presidente turco.

A organização liderada por António Guterres “esbraceja” com um embargo de armas a que ninguém dá importância e todo o tipo de armamento continua a chegar ao país do Rei Idris.

Para não fugir à regra, as antigas potencias coloniais estão de olho no terreno e muito atentas ao que o futuro lhes reserva, não fosse a Líbia um enorme produtor de petróleo. A italiana ENI tem fortes interesses no país e o Governo de Roma acaba de vender duas fragatas ao Egipto (aliado de Haftar) por 1,2 mil milhões de euros, para além de outros contratos que chegam aos 10 mil milhões.

A França, tenta fazer diplomacia discreta e diz que teme uma “sirianização” da guerra na Líbia. O GNA acusa a França de apoiar Haftar, mas Paris desmente, sendo certo que ainda em Abril o GNA protestou devido a um voo de um caça Rafale francês nos céus da Líbia, sem autorização do Governo de Tripoli. Também em França, a Revista “Politique Internationale” distinguiu o Marechal Kalifa Haftar com o prémio de “Coragem Política”. A mesma revista que distinguiu recentemente Ursula von der Leyen, Alexis Tsipras e o Rei Abdullah (Jordânia), considera que Haftar está num combate decisivo contra o terrorismo islamita e contra o regime da Irmandade Muçulmana instalado em Tripoli (referência ao GNA).

No pântano que está criado na Líbia, a União Europeia – como sempre – diz que está preocupada e os Estados Unidos parece que não sabem o que fazer. Os Estados Unidos poderão sentir necessidade de estancar ambições turcas e russas na região e dá para desconfiar que, se alguma posição for tomada – há uma iniciativa do Egipto que aponta para um cessar-fogo – Washington terá em conta os efeitos que isso provocará nas eleições presidenciais já no final do ano. Donald Trump pode vir a precisar de uma guerra. Quem sabe se será a da Líbia.

PS – será importante para melhor perceber a guerra na Líbia, ver as companhias petrolíferas com interesses no país e também o fluxo de venda de armas de e para os países envolvidos.


Pinhal Novo, 14 de Junho de 2020
josé manuel rosendo

domingo, 7 de junho de 2020

Vidas palestinianas contam. Mas parece que não...

Foto de Iyad Halaq, retirada do Twitter de Saeb Erakat. 
Iyad Halaq, um jovem autista palestiniano, 32 anos, foi morto pela polícia israelita em Jerusalém Oriental, a 1 de Junho, quando se deslocava para um centro de apoio a crianças com necessidades especiais. A polícia diz que Iyad Halaq não respeitou uma ordem para parar e a polícia suspeitou que ele transportava uma arma. O suficiente para atirar a matar. Saeb Erakat, o histórico negociador palestiniano, chamou-lhe um assassínio. Não me parece que se lhe possa chamar outra coisa. Um médico citado pela BBC, familiar de Iyad Halaq, diz que o jovem palestiniano nem sequer tinha noção do que é uma arma ou um polícia e que muito provavelmente quando um estranho falasse com ele a reacção poderia ser a de fugir.

Iyad Halaq fazia regularmente o mesmo percurso numa zona de máximo controlo das forças israelitas. A Agência France Press contou que o caminho que levava à escola Elwyn Al Qoods, junto à Esplanada das Mesquitas, foi feito por Iyad Halaq nos últimos seis anos e torna-se difícil acreditar que não estivesse perfeitamente identificado e referenciado. A polícia israelita concluiu depois que Halaq não transportava nenhuma arma. A autópsia revelou que foi assassinado com duas balas no peito. O pai de Iyad, citado pela France Press diz que quer ver as imagens. Não deve haver local no mundo com mais câmaras do que a cidade velha de Jerusalém. “Se passar por lá um mosquito, é possível saber”, disse o pai de Iyad.

Depois, vieram os lamentos e os pedidos de desculpa. O Primeiro-ministro israelita Benjamin Netayahu disse que é uma tragédia e Benny Gantz, Ministro da Defesa de Israel, lamentou e expressou tristeza. Segue a habitual investigação. Os advogados de defesa dos dois militares israelitas (da Polícia de Fronteiras) já disseram que os dois agiram de acordo com o que está protocolado.

Tal como não somos todos iguais perante a pandemia do novo coronavírus (embora nos tentem impingir que “estamos todos juntos”), não somos todos iguais perante a prepotência e o abuso da força, seja da parte de forças policias, seja da parte de forças de ocupação em territórios que, de acordo com a Lei Internacional, não lhes pertencem e nos quais não têm autoridade.

Enquanto o mundo se levanta, e bem, por causa da morte do norte-americano George Floyd, contra o racismo e contra forças de segurança que matam pessoas com requintes de malvadez, o mesmo mundo ignora a morte de um jovem autista palestiniano apenas porque dois polícias de fronteiras pensaram que o jovem transportava uma arma. Pensaram, porque podem pensar o que muito bem entenderem.

O que nos Estados Unidos sendo frequente – a violência policial e racista – levou a manifestações um pouco por todo o mundo, na Palestina, em Jerusalém Oriental ocupada, parece normal. É apenas a confirmação de que as vidas não têm todas o mesmo valor ou, dizendo melhor, a nossa grelha de valores está completamente avariada e devia envergonhar-nos.

O valor das vidas dos seres humanos George Floyd e Iyad Halaq devia ser exactamente o mesmo. Para além da indignação que a morte de George Floyd provocou, e bem, devemos interrogar-nos sobre os motivos que nos levam a ignorar, ou desvalorizar, outras mortes. Ou será que não aceitamos umas e aceitamos outras?

Pinhal Novo, 7 de Junho de 2020
josé manuel rosendo